Não, não vivi o 25 de Abril

Não, não estive lá convosco, mas hei-de lá estar quando, chegada a vossa hora, tiverem de dizer adeus a este que foi o maior sonho de todos os portugueses: sonhar poder sonhar

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Alice / Flickr

Pensando bem, são cada vez mais aqueles que não viveram o 25 de Abril; são cada vez mais os filhos da liberdade e cada vez menos os pais da mesma. É a renovação geracional, ou apenas a prova de como o mundo continuará a girar muito para além deste dia, mas desta feita em função deste dia e por causa deste dia.

Não, não vivi o 25 de Abril, por isso pouco ou nada posso contar ou dizer acerca do mesmo, de como por causa do 25 de Abril posso votar em liberdade e escolher os meus representantes sem medo de represálias, de como por causa do 25 de Abril posso expressar as minhas opiniões sem consequências ou prisões, de como é possível escrever um livro (e pior coisa não há do que escrever um livro) sem ter de ser interrogado e violentado logo de seguida pela multitude de ideias pululantes neste âmago que é o nosso, sequiosas de sair cá para fora sem que à sua espera esteja um valente cassetete e uma coronhada, seguidos de noites sem fio e sem sono, nu numa sala nua acordado ao som de pontapés nos lugares mais recônditos do meu corpo apenas porque, um dia, quis pensar de um modo diferente ao da maioria vigente.

Mas eu não vivi o 25 de Abril, por isso que posso eu saber acerca do mesmo? Porque não conheci o Militão Ribeiro e desconheço as agruras que levaram à sua morte na penitenciária de Lisboa, e de igual modo desconheço o significado de ver a minha filha abatida a tiro apenas porque desfila na linha da frente de um piquete de greve, ou o sem número de militantes comunistas que deram as suas vidas e os seus braços abertos à morte para que hoje tu possas estar a ler estas palavras sem medo da porrada, ao invés sentado num café ou numa paragem de autocarro, no meio da rua, como se fosse um dia normal e nada disto tivesse alguma vez acontecido. E não, não vivi o 25 de Abril, porque eu sou o 25 de Abril, nasci em Abril e respirei em Abril, gritei em Abril e grito e gritarei Abril até que a voz me doa mais ao comprimido de mebocaína, porque eu fui um bebé nascido livre, na liberdade.

Por isso só posso pedir desculpa por não ter estado convosco lá, neste 25 de Abril, Deus não quis que os meus olhos vissem o dia no qual, pela madrugada e inusitadamente, Paulo de Carvalho deu o mote para que hoje, dez milhões de portugueses possam viver, libertos, o rumo que as suas vidas levam. Não, não estive lá convosco, mas hei-de lá estar quando, chegada a vossa hora, tiverem de dizer adeus a este que foi o maior sonho de todos os portugueses: sonhar poder sonhar. Agora podemos acordar.

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