“Contabilista de Auschwitz” diz que não matou mas assume “culpa moral”

Sobreviventes satisfeitos com julgamento. Hedy Bohm quer poupá-lo à prisão, embora deseje que seja condenado, “para que nunca mais se possa dizer: ‘Eu fui uma peça na máquina, eu não matei’”.

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Gröning disse em tribunal que não teve “nada que ver” com a morte de pessoas JULIAN STRATENSCHULTE/AFP

O antigo “contabilista de Auschwitz”, Oskar Gröning, 93 anos, que nesta terça-feira começou a responder pela acusação de “cumplicidade” no assassínio de 300 mil pessoas, assumiu a “culpa moral” e remeteu para os juízes uma decisão sobre a sua “responsabilidade penal”.

“Não há dúvida de que eu partilho uma culpa moral”, disse, segundo a AFP, o antigo SS, no início do julgamento, no tribunal de Luneburgo, a sul de Hamburgo. “Quanto à questão da responsabilidade penal, cabe-vos decidir.”

Na presença de 67 queixosos, sobreviventes de Auschwitz e familiares de vítimas, Gröning, que nunca escondeu a adesão ao nazismo mas que nega o envolvimento directo na morte de prisioneiros, pediu “perdão”, como já tinha feito em declarações à imprensa.

As acusações que lhe são feitas dizem respeito ao período entre Maio e Julho de 1944, quando chegaram a Auschwitz 137 comboios com 425.000 judeus da Hungria. Pelo menos 300.000 foram mortos.

O antigo guarda, que nas últimas décadas falou abertamente sobre o seu passado e levantou a voz contra o negacionismo – o que torna o seu caso invulgar –, incorre numa pena de três a 15 anos de prisão. Considera-se inocente por não ter estado directamente envolvido em actos de extermínio. No início do julgamento repetiu que não teve “nada que ver” com a morte de pessoas.

Gröning vê-se, como disse em entrevistas, “uma peça da máquina que eliminou milhões de pessoas inocentes” mas, formado na ideia de que os judeus eram o mal da Alemanha, reconhece que considerava “a destruição do judaísmo uma coisa necessária”.

O “contabilista de Auschwitz”, assim chamado porque lhe cabia amealhar o dinheiro dos prisioneiros e enviá-lo para Berlim, é também acusado de recolher as bagagens dos recém-chegados para que os seguintes não as vissem, evitando que se apercebessem imediatamente do seu destino. Segundo a AFP, terá de responder ainda à acusação de, pelo menos uma vez, ter participado na separação entre deportados seleccionados para trabalhar e os que seriam mortos de imediato.

Nesta terça-feira, Gröning entrou na sala de audiências ajudado por dois advogados. Após a leitura da acusação iniciou o seu depoimento, que ocupou a maior parte da manhã do primeiro dia de audiências de um julgamento que deverá prolongar-se até ao final de Julho.

Falou do alistamento voluntário na força de elite do nazismo, em Outubro de 1940, aos 19 anos, e da transferência para Auschwitz, na Polónia ocupada, aos 21. E deu a sua versão sobre o quotidiano no campo da morte, distinguindo entre o trabalho que fazia e o dos directamente implicados em actos de extermínio. Disse que a sua tarefa era “evitar os roubos” de bagagens de deportados, que alimentavam um importante “mercado negro”.

“Sensação de justiça”
Para os sobreviventes, qualquer que seja o destino de Gröning é importante o julgamento acontecer. “Sempre tivemos a sensação de que nunca seria feita justiça. De certa maneira é uma satisfação”, disse, à n-tv, Eva Fahidi-Pusztai, de Budapeste, 89 anos, sobrevivente de Auschwitz, que ali perdeu 49 familiares.

Para Eva Kor, 81 anos, que escapou mas perdeu os pais e duas irmãs no campo, e agora viajou dos EUA, Gröning “é um assassino porque fazia parte de um sistema de assassínios em massa”. Hedy Bohm, 87 anos, que veio do Canadá, entende que deve ser poupado à prisão, por ter 93 anos, mas deseja que seja condenado. “Os que cometem hoje crimes devem saber que serão responsabilizados no futuro”, disse, citada pela Reuters. “Para que nunca mais se possa dizer: ‘Eu fui uma peça na máquina, eu não matei.’”

Oskar Gröning recordou que, durante o tempo em que esteve em Auschwitz, de 1942 a 1944, pediu três vezes para ser transferido para a frente de combate – a primeira depois de ter visto ser morto um bebé que estava a chorar –, o que só aconteceria já perto do final da guerra.

O seu julgamento é uma consequência da condenação, em 2011, a cinco anos de prisão, de John Demjanjuk, antigo guarda do campo de Sobibór, que morreu no ano seguinte, aos 91 anos. Até então só tinham sido sentenciados dirigentes nazis, em Nuremberga, e carrascos directamente envolvidos no extermínio.

A jurisprudência levou a que fossem considerados suspeitos de envolvimento no Holocausto nazis que nunca antes haviam sido acusados. A idade avançada e o estado de saúde de muitos fazem com que Oskar Gröning seja, provavelmente, um dos últimos a sentar-se no banco dos réus. De certa forma, parece ter desejado esse destino, na esperança de conseguir encontrar “a paz interior” que, numa entrevista, disse ter perdido em Auschwitz – campo onde morreram mais de um milhão de pessoas, símbolo do extermínio de seis milhões às mãos do regime nazi.

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