Quando cantar rock é uma prova de vida

Têm mais de 65 anos. Fintam a rotina a cantar algo que lhes é menos familiar, mas nem por isso menos português. Às 21h30 de terça-feira, o grupo A Voz do Rock leva a sua performance musical encenada ao Auditório Municipal de Castro Daire.

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A Voz do Rock é um projecto com direcção artística de Ana Bento que junta pessoas com mais de 65 anos Maria João Gala
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Os ensaios acontecem às quartas-feiras Maria João Gala
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O desafio é aprenderem coisas novas, mostrarem aos outros que são capazes de arriscar Maria João Gala
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Maria João Gala
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Entre a caixinha dos comprimidos e o caderninho das orações e o terço, está uma imagem do Menino Jesus deitado numa almofada de renda de bilros que Alcina Pereira fez com as suas próprias mãos. Passa horas sentada na cama, encostada à parede, a rezar, a rezar. “Ó Trindade Santa, Pai, Filho e Espírito Santo, modelo perfeito de comunidade e fonte da verdadeira comunhão…”

Às quartas-feiras de manhã tem menos tempo para se sentar a rezar no quarto que partilha com duas outras idosas. Apruma-se – longos cabelos grisalhos apanhados no topo da cabeça em forma de "o", saia de tecido preto, casaquinho de malha preta – e segue para a associação cultural Gira Sol Azul, a poucos quilómetros do Lar Residência Viscondessa de S. Caetano, da Santa Casa da Misericórdia de Viseu. É dia de ensaio d’ A Voz do Rock, projecto com direcção artística de Ana Bento.

Alcina enfia-se numa sala com homens e mulheres, uns com mais e outros com menos idade do que ela, que conta 86 anos, a cantar temas de indie e de rock português, como este, dos Clã: “A vida é como uma corda/De tristeza e alegria/Que saltamos a correr/ Pé em baixo, pé em cima/Até morrer”.

Quando a animadora Maria do Céu Ferreira lhe falou em cantar, pensou que ela se estivesse a referir às missas, que se celebram aos domingos e às quintas na capela, junto ao lar, dentro da propriedade. “Se eu soubesse para o que era, era capaz de não aceitar”, diz. “Eu gostava de cantar, mas era cantigas da nossa terra, cantigas da igreja, cantigas da rua. Nem sabia o que era o rock. Nunca tal ouvi.”

Nos primeiros ensaios, muito resmungava a dona Alcina. “Não gostava dessas cantigas. A gente ia mas dizia sempre que não gostava.” Nada lhe desagradava tanto como cantar Chiclete, dos Táxi. “Ai, que coisa tão feia!”, ri-se. “Já não me importo. A gente já se habituou. A gente já sabe.” Ainda na manhã do dia 11 de Abril cantou no foyer da Casa da Música, no Porto: “E como tudo que é coisa que promete/A gente vê como uma chiclete/Que se prova, mastiga e deita fora, se demora”.

A ideia ficara a fermentar na cabeça de Ana Bento desde que um amigo lhe enviara umas imagens do projecto norte-americano Young@Heart, dizendo-lhe: “Nós quando formos velhos!” E se fizesse algo assim? Adora trabalhar com gente que ninguém espera ver a fazer música. Avançou quando, em 2013, os programadores do festival Viseu Artes a desafiaram a apresentar propostas. 

Não faltavam idosos com dias cheios de nada. Alguns estavam muito bem arrumadinhos neste lar e no lar da Associação de Solidariedade Social da Freguesia de Abraveses. Ao longo do mês de Janeiro de 2014, Ana Bento e Ricardo Augusto foram lá várias vezes desafiá-los. Decorridas duas semanas, tinham 30 idosos dispostos a entrar no projecto – a maior parte maiores de 80 anos.

Trataram de baixar a média de idades para fazer A Voz do Rock ouvir-se. Falaram com amigos, que falaram com amigos. Atraíram pessoas que vivem sozinhas ou com familiares, umas ainda a trabalhar, outras a matar horas no centro de dia de Abraveses. Ana achou que esta mistura de idades, de condição socioeconómica, melhoraria a componente artística e faria bem ao colectivo.

Nem só Alcina resistiu. “Foi difícil convencê-los a cantar estas músicas”, recorda Ana Bento. “Só queriam cantar folclore ou fado.” Nos primeiros meses, em todos os ensaios havia alguém que dizia: “isto não presta”; “Se cantássemos uma modinha é que era”; “Isto nem parece cantar, isto parece falar”. Foram vencendo resistências: “Isso já sabem; para isso, não precisavam de estar connosco”, diziam-lhes Ana Bento e Ricardo Augusto. “O desafio é aprenderem coisas novas, mostrarem aos outros que são capazes de arriscar num campo que não é o vosso, serem um bom modelo para os outros”, repetiam. Ainda têm de os saber levar, mas agora para os pôr a aprender canções novas, coreografias novas.

Augusta Pinto, de 79 anos, enfada-se quando ainda não sabe uma e já começam a aprender outra, mas não desiste. “Eu não sei ler! Quem sabe ler, lê. Quem não sabe ler, vai atrás dos outros. Uns com os outros, lá vamos.” Esforça-se para decorar. “Às vezes há palavras que … não chego lá. Canto mais baixinho. Onde sei mais, vou alto. Onde sei menos, vou baixo. Pois, que remédio!”

Não foi por falta de vontade que não aprendeu a ler na infância. A pobreza não deixou. “Eramos dez irmãos. Minha mãe mandava-nos servir com oito ou nove anos. Às vezes, saíamos a pedir pelas aldeias. Um dava cebolas, outro milho. Fomos todos servir em pequenos. Só um é que aprendeu a escrever e a ler.”

Já teria tido tempo para aprender a ler e a escrever no lar, se a isso se tivesse dedicado. Entrou quando o marido morreu, já lá vão uns dez anos. Canta, reza, faz ginástica e caminha, caminha até à cidade. De vez em quando entra no supermercado e compra azeitonas e beterraba, duas das poucas coisas que tem prazer em levar à boca. “Muitas doenças, sabe? Tomo 15 comprimidos por dia.”

As vozes já não são límpidas. Ninguém espera que sejam. “O objectivo não é cantar o tema como é no original”, explica Ana Bento. Nos ensaios, ela ou Ricardo Augusto cantam primeiro, para todos verem como é. “Eles tentam imitar, mas fazem à maneira deles. Nós cedemos onde achamos que é interessante a interpretação deles. ‘Ok, vamos fazer sempre assim.’ No resto insistimos para fazerem como queremos. Há esse jogo de equilíbrio até chegar ao esquema final”.

Não tem de ser perfeito. “Eu acho que isto é, acima de tudo, uma prova de vida”, sintetiza. “Há gente que está o dia inteiro sentada a ver televisão.” No princípio de tudo, neste e no outro lar, havia muito quem lhes pedisse para fazer os ensaios neste ou no outro lar. “Achávamos que, mesmo com dificuldade, deviam vir.” E estão a ir. Há uma mulher que se desloca numa cadeira de rodas. Têm os músicos de ajudá-la a entrar e a sair da carrinha, a entrar e a sair do edifício. “Isso é viver!”

Para lá do terço diário, no Lar Residência Viscondessa de S. Caetano há assíduos trabalhos manuais, ocasionais passeios, periódicas sessões de cinema. E, por acção da autarquia, natação ou hidroginástica. Mas, até pelas limitações físicas, admite Elisa Baptista, a directora técnica, muitos passam o dia quietinhos, a rezar, a fazer renda, a ver televisão, a ler revistas ou jornais.

Muito desconfiou Elisa Baptista desta ideia de fazer uma performance musical encenada que celebrasse a partilha musical. “Tem as portas abertas. Se os conseguir motivar, agradeço”, terá dito a Ana Bento. “Quando dei conta, já estavam numa motivação”, recorda. “Já estavam preocupados se não vinha o autocarro, se não estavam a horas nos sítios.” Ao contrário de outras actividades propostas, esta “tem resultados que eles conseguem ver”. “Eles vêem que as pessoas gostam e querem ir.”

É de Alcina a primeira imagem pública d’ A Voz do Rock: a roupa preta, os longos cabelos grisalhos apanhados no topo da cabeça, em forma de "o", só que de óculos escuros, a segurar uma guitarra eléctrica. Ri-se só de pensar que nem queria que filhos e netos soubessem que ela se metera naquilo. “Podiam levar a mal. Podiam dizer: 'a minha mãe anda maluca.'” Tantos elogios recebeu logo nas primeiras apresentações, a 24 de Maio e a 1 de Junho, no Teatro Viriato, em Viseu, com Ana Bento no baixo, Alberto Rodrigues no piano, Bruno Pinto na guitarra, e Joaquim Rodrigues na bateria.

“O rock é bom”, resume Albertina Simões Jesus, de 95 anos. É o que lhe dá prazer, para lá das flores de papel colorido. “Como é que aprendi fazer flores? Foi a minha inteligência!”, conta a antiga cozinheira. “Vi umas muito mal feitas. Uma menina que esteve cá a fazer um estágio é que as fazia. Tirei o modelo. A perfeição fiz eu depois. Tenho jeito para fazer coisas com as mãos.” 

Não fosse este entusiasmo, A Voz do Rock teria sido só uma experiência. O projecto tinha um tempo limitado. Ia de Janeiro a Junho do ano passado. Haveria apenas uma apresentação a 31 de Maio e outra a 1 de Junho. Ana Bento nunca mais se esqueceu das palavras que ouviu no prelúdio do fim que não chegou a ser fim: “No dia em que estreamos, no Museu Grão Vasco, a Albertina pediu para falar. Aquilo estava cheio de gente. Ela falou, falou, falou, agradeceu a este e àquele, e disse: ‘Vocês chamaram-nos para fazer isto e nós viemos, agora não nos podem abandonar.’”

O colectivo já tinha decidido continuar. “Não se preocupe, quarta-feira estaremos lá”, afiançou a directora artística. E estão. Quarta-feira após quarta-feira, juntam-se naquela sala, a aprimorar velhas canções e a ensinar novas, de vez em quando a lembrar-lhes que não se devem abanar para a direita e para a esquerda, como na canção popular, mas para a frente e para trás, como no rock.

“Estamos a tentar criar autonomia de ter um produto artístico para apresentar”, diz Ana Bento. O processo já começou. A celebrar os seus dez anos, a Casa da Música convidou colaboradores a trazerem projectos que desenvolvem fora. Ana Bento e Bruno Pinto, que ali fazem oficinas para bebés, propuseram A Voz do Rock. Entusiasmada, a plateia cantou com os idosos. E eles encheram-se de alegria e de vaidade. Às 21h30 deste 21 de Abril cantam no Auditório Municipal de Castro Daire.

Elisa Baptista nota algum ciúme no Lar Residência Viscondessa de S. Caetano. Um casal entrou há pouco. Um senhor está para entrar. Para ela, quantos mais, melhor. “Há muita gente a ver televisão. Batalhamos muito contra isso”, afiança. “Quero criar um grupo coral também. Muitos têm a parte religiosa muito marcada.”

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