Urgências, de novo

As urgências são hoje um inferno, porque foi destruída a sua capacidade.

O panorama apresentado num canal da TV sobre urgências em diversos hospitais tem duas características que aumentam a gravidade do problema desvendado há três meses. Não é conjuntural, mas cumulativo. Doravante será provavelmente sempre pior, se não forem tomadas medidas radicais. Já veremos quais.

A segunda circunstância é a intenção deliberada de esconder o problema. Visível na comparação entre as imagens da câmara indiscreta e as da câmara autorizada. Já se sabia que em algumas urgências se mostra a jornalistas apenas a parte civilizada, externa. Portas adentro, o inferno é outro. Um imenso desafecto à verdade acompanha esta atitude.

Vamos à realidade: as urgências são hoje um inferno, porque foi destruída a sua capacidade: escalas de dimensão "económica", redução a 50% do pagamento de horas extra, não substituição de profissionais reformados, emigrados ou desistentes; paragem na constituição das unidades de saúde familiar (USF) a montante do problema e congelamento da criação de cuidados continuados a idosos e dependentes (CCI) a jusante, recurso a médicos tarefeiros arregimentados por empresas, entrega das chefias a profissionais de bom nível, mas muito jovens, sem senioridade para imporem respeito e sem que a equipa que precariamente dirigem assegure produtividade no trabalho de banco e continuidade de cuidados. Sabemos que no afã de agradar, alguns administradores cortaram camas de internamento, sem precaver o futuro, ou sequer o presente. Sabemos que a procura se alterou com o envelhecimento, a pluripatologia, a prática recorrente de alguns lares lucrativos despejarem na urgência os idosos doentes com patologias ignobilmente agravadas, por não quererem contratar pessoal de saúde e não haver quem a tal os obrigue. Sabemos que emigraram em 2014, segundo as respectivas ordens, 400 médicos, (tal como 500 médicos dentistas) e outros tantos enfermeiros. Sabemos que começa a faltar o material de consumo. Já agora, sabemos também que os hospitais devem hoje cerca de 700 milhões de euros à indústria farmacêutica e cerca de 600 milhões às empresas que vendem dispositivos médicos, tornando a gestão do quotidiano um permanente operação de relações públicas com credores.

Tudo isto era previsível se tivesse havido quem pensasse no cavalo do inglês, morto pela redução a quase zero, da ração inicial. Se tivesse havido quem olhasse o sistema de forma global, e não de forma orçamental. Quem ouvisse os interessados, visitasse urgências de surpresa, falasse mais com o povo, andasse de metro e autocarro, desse crédito a jornalistas sérios e experientes.

Impossível, o governo cegou em vários gradientes. A cegueira de pensar que a fome salvadora regenerava o espírito e curava o organismo. Depois, ainda, por os seus amigos lá de fora e alguns opinadores cá de dentro, prescreverem o mercado e suas falhas como terapêutica única contra as falhas de governo.

Quando a evidência ultrapassa a razão, recorre-se à negação e ao absurdo de transformar o mau em bom. O comentário de um responsável político valorizando o facto de os doentes estarem em boas camas e não em macas, tão espontâneo quanto insensato, entristece-nos duplamente: por vermos a negação erigida em doutrina e por o improviso infeliz se arriscar a ser confundido com cinismo. Agora que aqui chegámos, que fazer, para recuperar a confiança dos cidadãos nos seus hospitais?

Estudem ou mandem estudar rapidamente a dimensão e profundidade do problema. Vão aos locais, ver com os próprios olhos e sem aviso. Têm que incidir sobre as causas: acelerar a criação de USF e CCI; rever os pagamentos de horas extra; tentar substituir tarefeiros por médicos do hospital, com incentivos adequados; tentar, onde possível, profissionalizar equipes de urgencialistas; readmitir médicos reformados em regime de acumulação com pensão, sem cortes, por um período transitório de três anos, até os seis mil internos em formação a terem concluído; visitar lares privados obrigando-os a contratar enfermeiros e médicos para não deixar descompensados doentes idosos; visitar lares públicos e particulares, aconselhando a colaboração estreita com o centro de saúde e hospitais da área, sem pensar em dois ministérios diferentes.

E fugir das falsas soluções: pensar que instituições particulares podem criar bons serviços de urgência é um insulto a essas instituições, voltando ao erro dos SAP. Cuidados de urgência são cuidados a sério, bem organizados, bem instalados e com pessoal suficiente, treinado e variado. Custa dinheiro? Pois custa, mais uma razão para não aliciar instituições honradas com ofertas envenenadas.

Cidadãos de segunda. Passos Coelho declara que apesar de ter servido em governos do PS, lamenta a perda de José Mariano Gago. Aguiar Branco no passamento de Silva Lopes, proclama ter ele a felicidade de morrer no mesmo dia que o imortal Manoel de Oliveira. Ficámos a saber que ser socialista é perda de cidadania, e que o passamento de Oliveira é motivo de alegria para os que com ele partiram, no mesmo dia. Que diabo! Qualquer dos três merece melhor epitáfio! Qualquer Português merece melhor governo.

Professor catedrático reformado

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