A política é a casa deles

Os ideais revolucionários correm-lhes nas veias. Simbolizam a passagem de gerações do 25 de Abril. São a família Mortágua: Camilo, Mariana, Joana

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Não há uma sem duas nem duas sem três e se um Mortágua, de nome próprio Camilo, marcou a história portuguesa antes e depois do 25 de Abril, as suas filhas, as gémeas Mariana e Joana, marcam a actualidade política. Com 28 anos, Mariana Mortágua tornou-se uma das figuras mais mediatizadas da política nacional. Foi destacada pela agência noticiosa Bloomberg como “uma estrela portuguesa” devido ao protagonismo que, com a sua preparação técnica e teórica e o seu desassombro, alcançou no inquérito parlamentar à queda do império dos Espírito Santo e é olhada como a mais-valia cujo prestígio público fez descolar o Bloco de Esquerda na Madeira. Joana é uma das principais figuras da direcção do BE, integra a sua comissão permanente, o organismo da comissão política que gere dia a dia o partido e os bastidores do grupo parlamentar.

O apelido Mortágua distingue-as. Não só porque não é um apelido comum, mas porque em meios mais politizados a pergunta é constante. São o quê a Camilo Mortágua, o antifascista exilado no Brasil e em França, fundador da LUAR e que participou no Assalto ao Santa Maria, no desvio de um avião da TAP, no assalto à dependência do Banco de Portugal na Figueira da Foz e dirigiu a ocupação da herdade Torre Bela? “Ser filha de Camilo Mortágua é giro. O meu pai, independentemente do que é a sua história, é uma pessoa gira”, garante Joana, admitindo que se fosse uma pessoa de direita “teria sentido o peso do nome”, já que teria de confrontar as suas escolhas com a história do pai.

Quanto aos que reagem negativamente ao apelido, Joana apenas diz: “Sempre fui imune a elas.” E acrescenta: “Se eu não compreendesse as razões que o levaram a fazer o que fez, talvez tivesse de justificar, mas as razões políticas explicam.” E remata afirmando que “é um orgulho, um exemplo e uma inspiração” ser filha de Camilo Mortágua. Também Mariana lida bem com o apelido. “Nunca senti peso pelo nome, gosto muito do meu nome e tenho orgulho em usá-lo, é o nome do meu pai, sinto-me tão confortável, mesmo quando olham de lado, honestamente não me incomoda”, confessa, sorrindo. “A Joana está sempre a dizer que há um Mortágua pide e um revolucionário, ainda bem que somos filhas do revolucionário.”

Aos 81 anos, Camilo Mortágua é um dos nomes ligados ao combate antifascista e depois do 25 de Abril ao PREC (Processo Revolucionário em Curso). E não hesita perante a pergunta: Valeu a pena? “Sim, isso não se discute. É evidente que valeu a pena, com erros e defeitos. A evolução humana faz-se de pessoas a ir em frente, mesmo quando não é seguro o passo que se dá.” E sustenta que é preciso capacidade de risco, pois “é natural nos homens e até nos animais que se movimentem, a inércia é para os materiais, os seres vivos têm de se mexer”. Daí que defenda: “Mesmo acreditando que não se muda nada, há que tentar.”

Não deixa de admitir que, “na fractura que foi o 25 de Abril, muito cedo e muito rapidamente, houve demasiada gente a querer tirar proveito da consciência e dos hábitos dos portugueses”, quando “para desconstruir o que havia e construir outra sociedade não podia ser de um momento para o outro”. Mesmo assim, garante: “Há uma coisa de que me orgulho muito, não é do que fiz, mas é sobretudo da maneira como foi feito e da maneira como isso pode servir para o futuro. O que eu me orgulho é de com a idade que tenho nunca me ter corrompido. Disso eu orgulho-me.”

E o que Camilo Mortágua fez não é pouco, ele é um pioneiro nos métodos de acção e luta política. Integrou o assalto ao paquete Santa Maria, liderado pelo capitão Henrique Galvão, que conheceu em Caracas. Aos 27 anos, Camilo Mortágua integrava a Junta Patriótica Portuguesa e com Galvão funda a DRIL (Direcção Revolucionária Ibérica de Libertação). Em 1959, começaram a preparar o assalto ao Santa Maria. A “Operação Dulcineia” foi o primeiro acto de pirataria moderna. O paquete tinha 350 tripulantes, 600 passageiros, foi tomado por 24 homens, que o controlaram entre 22 de Janeiro e 3 de Fevereiro de 1961, quando desembarcam no Recife.

Viverá no Brasil até 1966, ano em que vai para Paris, onde um ano depois fundará a LUAR (Liga de Unidade e Acção Revolucionária), com Palma Inácio e Emídio Guerreiro. Mas logo em Novembro de 1961, mal chegara ao Brasil, vai a Marrocos onde a 10 de Novembro, com Palma Inácio, desvia o Super Constellation da TAP, do voo Casablanca-Lisboa, naquilo que é o primeiro desvio de um avião comercial de que há registo internacionalmente e que ficou para a história como a “Operação Vagô”. Sobrevoam parte do país e lançam 100 mil panfletos sobre Lisboa, Barreiro, Setúbal, Beja e Faro.

Mas o pioneirismo na inovação das formas de luta política não ficou por aí. Já em Paris, Camilo Mortágua, António Barracosa e Luís Benvindo entram clandestinamente em Portugal, em Maio de 1967, e fazem o que foi o primeiro assalto a um banco por razões políticas. O objectivo era financiar a LUAR e o assalto será reivindicado por Palma Inácio e Emídio Guerreiro em Paris. Escolheram a agência do Banco de Portugal na Figueira da Foz, pois assim não roubavam o dinheiro do povo mas o do Estado fascista. Só que as notas roubadas ainda não tinham entrado em circulação e por isso a sua numeração era conhecida do Estado e o alerta que as inutilizou foi lançado. Não lhes serviu de nada. Camilo Mortágua conta que ainda chegaram com muitas a Paris, mas deixaram outras pelo caminho. Sobre a fuga que fez parcialmente a pé transportando os sacos de notas, ironiza: “Não há muita gente que tenha caído tantas vezes por terra com o peso do dinheiro sendo pobre.”

Já depois da revolução, a 23 de Abril de 1975, a população da Azambuja decide ocupar a Herdade Torre Bela, no Ribatejo, entre Alcoentre e Rio Maior, que era a maior herdade murada do país e pertencia ao Duque de Lafões, chefe da família Palmela. Os camponeses optaram por não pedir apoio ao Partido Comunista, como era hábito na época, e optaram por pedi-lo à LUAR. Assim Camilo Mortágua foi destacado para dirigir a ocupação que durou até 1978 e ficou registada pelo documentário de Thomas Harlan, editado em 1976.

Na Torre Bela, Camilo Mortágua conhece Maria Inês Rodrigues, uma jovem do MRPP, 20 anos mais nova. Em 1978 vêm juntos para Lisboa e depois para Moçambique. “Fui para Moçambique em finais de 1978, passei antes pela cooperativa artística Era Nova.” É então que Maria Inês Rodrigues apresenta o companheiro à família, gente de esquerda, politizada e com pergaminhos de oposição e próxima do PS (Maria Inês é prima direita da eurodeputada socialista Maria João Rodrigues). É rindo que Joana conta: “Adorava ter assistido ao momento em que a minha mãe apresenta o meu pai à minha avó, vindos da Torre Bela e sendo ele quem é.”

Após alguns anos como cooperantes do Ministério da Agricultura moçambicano, Camilo e Maria Inês regressam a Portugal em 1983. Estacionam “um ano e tal em Odivelas, à procura de espaço. Quem vem de África precisa de espaço”, lembra Camilo. Acabam por descobrir o sítio idealizado no Alvito (em Beja), uma pequena propriedade onde vivem há três décadas. Começaram por viver num casão com porcos que tinha um tapume a dividir, de um lado estavam os porcos, do outro eles”, explica Joana.

É no Alvito que as gémeas nascem a 24 de Julho de 1986 e lá são educadas. Camilo explica que as filhas não tiveram uma “educação exigente”, mas “houve um discurso, por volta dos seis ou sete anos”, que assentou nos seguintes princípios: “Nada é proibido, peçam informação de tudo o que quiserem que expliquemos. Não venham perguntar se podem ou não podem, a liberdade é total e a responsabilidade é total.” E explica que nunca foram rebeldes, pois “a rebeldia é sempre uma contracção” e no caso da educação de Mariana e Joana “não houve pressão nenhuma”. Em todo o caso, “se há repressão, deve haver rebeldia”.

O pai afirma ainda que elas “fizeram tudo o que quiseram dentro dos limites”. Mas reconhece que ele e Maria Inês fizeram escolhas. “Nós tivemos as opções de enquadramento, como querer educá-las aqui, andarem pela aldeia, sem nos preocuparmos. Tiveram o seu espaço para fazer as suas festas nocturnas, tiveram uma boîte aqui em casa”, relata Camilo Mortágua, que confessa: “Tivemos os medos dos pais, mas nunca foram justificados.”

Também as gémeas falam da sua educação sem sobressaltos. “A minha mãe trabalhava em Beja e andámos num infantário lá, depois estudámos no Alvito”, lembra Mariana. Quando a escola do Alvito acabou, separaram-se. “No 10.º ano fui para Beja, queria a área Económica e Social. A Joana foi para Viana do Alentejo estudar Humanidades. A partir daí andámos sempre em escolas e universidades diferentes”, conta Mariana. Joana explica: “Chegámos ao 9.º ano em Alvito, não havia secundário. Em Viana, só havia humanidades, era mais pequeno, mais confortável. São 10-12 quilómetros, havia transporte da câmara e não era por automotora, como para Beja.”

A escola de Viana do Alentejo era uma “realidade diferente”, define Joana. “No 10.º ano, éramos 14 e no 12.º, sete ou oito, os alunos foram saindo. O ensino com turmas pequenas beneficia as pessoas se houver escolhas, não quando se deve a pessoas que saíram por fraco aproveitamento ou necessidade económica ou poucas expectativas — isso baixa a qualidade da turma, pois os alunos estão menos motivados, não puxam pelas aulas. O Alentejo está desertificado.”

Quando chegam à universidade, vivem em Lisboa, juntas “numa casa pequena no Bairro do Rêgo, que a minha mãe comprou”, prossegue Mariana, que fez Economia no ISCTE e estudou um ano em Londres, onde começou um doutoramento na School of Oriental and African Studies (SOAS) da Universidade de Londres, que largou para vir ser deputada, em 2013.

Joana tirou Relações Internacionais no ISCSP e é nesta escola que logo de início, em 2004, adere ao Bloco de Esquerda. Já Mariana aderirá mais tarde, em 2009. Até lá permanece ligada à associação Acção Jovem para a Justiça e Paz, presidida por Teresa Cunha, uma associação feminista de Coimbra, que ambas integram desde cedo. “A AJP tinha ido ao Alvito fazer um workshop sobre direitos humanos, o [oposicionista à ditadura militar brasileira] Alípio de Freitas fez a ligação e nós entramos”, lembra Joana.

“Gostarmos de política tem que ver com a nossa casa, com os pais e os amigos dos pais. O ambiente sempre foi muito politizado, muito activista. A lógica de partidos só conheci mais tarde”, corrobora Mariana, que confirma que “a Joana interessou-se primeiro por partidos” e cedo foi dirigente do BE, assumindo: “Ela entrou para o BE muito nova, sempre a vi com muito orgulho e aprendi muito com ela.”

A política está assim nas veias das gémeas Mortágua, que cresceram a ter discussões políticas com os pais. “Muitas vezes, sou eu e a minha irmã contra o meu pai, e a minha mãe tenta moderar”, garante Mariana, que esclarece: “A minha mãe é tão politizada quanto nós ou o meu pai.” A importância dos pais naquilo que hoje são é determinante também para Joana: “Fomos educadas por duas pessoas com qualidades extraordinárias e duas pessoas inteligentes. Isso cria um ambiente propício à curiosidade, ao interesse”, sublinha, concretizando: “A capacidade de argumentação, aprendemo-la, tanto pelo meu pai, como pela minha mãe, à mesa do jantar, onde era proibido ver televisão e onde tínhamos de jantar sempre juntos. À mesa, o assunto, muitas vezes, era política. Eles valorizavam as nossas opiniões e faziam-nos ter opinião, estimulavam. O meu pai sempre disse que pensássemos pela nossa cabeça.”

A autonomia de ambas é uma realidade. Tanto que não se assumem como as gémeas tradicionais. “Somos muito protectoras uma da outra, mas isso não nos impediu de ter percursos diferentes, sempre próximas, mas não somos o estereótipo da relação das gémeas”, confessa Mariana, sem deixar de fazer questão de garantir: “Nasci primeiro, nasci dois minutos antes. Acho-me a mais velha porque a idade é contada a partir de quando nascemos e não com os nove meses de gestação.” E Joana concorda. “Sempre recusámos a tese que diz que o tempo nos gémeos é ao contrário, que assenta numa suposição de que quem sai depois foi concebida primeiro. Sempre achámos isso um estereótipo. Mas a diferença é mínima, nascemos de cesariana.” Mas ambas não negam a semelhança física, ainda que Mariana seja maior, mais alta e mais encorpada. E Joana afirma: “O mais parecido é a voz, já consegui enganar a minha mãe uma vez ao telefone.”

A não obediência ao padrão tradicional dos gémeos é também defendida por Joana. “Nunca fomos inseparáveis, melosas, nada do padrão expectável. Demo-nos como quaisquer irmãos, não há irmãos que não briguem, há sempre potencial de discussão.” E garante que “não há diferença em ser irmã da Mariana hoje e há 25 anos quando tínhamos três anos e brincávamos no parque”. E a ligação forte entre ambas mantém-se, embora “férias em comum seja difícil, pois é difícil hoje conciliar agendas”, explica Mariana. “Mas fazemos almoços e estamos sempre a ir ao Alvito. E a levar pessoas lá a casa.”

Porém, a semelhança entre as duas dificulta a terceiros saber qual é qual. “Há uma coisa a que já me habituei, que é ser cumprimentada na rua por pessoas que não conheço. Quanto mais efusivas são no cumprimento, mais atrapalhadas ficam quando percebem que não sou a Mariana. Mas quem tem gémeos habitua-se”, diz Joana, para quem a visibilidade pública da irmã, que lhe advém de ser deputada e do desempenho que teve no inquérito parlamentar ao BES, é normal. “As pessoas têm os seus percursos e podem encarar a visibilidade do seu trabalho como consequência ou como objectivo”, defende, acrescentando: “Para a Mariana e para mim, é uma consequência. Quando o trabalho é o interesse público, a visibilidade vem. Quando se pertence a órgãos do partido, isso dá menos exposição pública. São momentos no percurso de quem tem esta vida.”

A simplicidade com que as gémeas Mortágua falam sobre si é a mesma com que o pai fala delas. “Para mim, elas são normais, a única coisa que eu sei é que elas trabalham e penso que gostam de fazer aquilo que fazem”, responde Camilo Mortágua quando confrontado com a capacidade de intervenção política das filhas. E faz questão de estabelecer, em pinceladas largas, as características que, para ele, diferenciam as duas gémeas Mortágua. “Elas são diferentes. Em linguagem antiga, eu diria que a Mariana é marrona, agarra-se aos livros, trabalha e leva isso muito a sério. Gosta dos números e da matemática”, explica, contrapondo: “A Joana gosta muito de trabalhar com as ideias e é mais intuitiva, mais espontânea, menos estruturada. Se calhar, teria reagido mais cedo antes da ditadura, teria aceitado menos a falta de liberdade.”

Protector, não deixa de manifestar a sua preocupação pelo facto de que “haja um grande desequilíbrio entre uma e outra”, pelo que defende que “é preciso estar com atenção, cuidado, não endeusar uma e vitimizar a outra. Elas são diferentes, cada uma tem os seus méritos”. Mas garante que a visibilidade das filhas é merecida: “O facto de a Mariana ser deputada não é só por si razão, nem teria, de ter visibilidade. Mas naquela área ela trabalha muito.”

Nega que elas sejam uma excepção na geração dos filhos cujos pais fizeram o 25 de Abril. Camilo Mortágua lança o desafio: “Do ponto de vista colectivo, do ponto de vista nacional, de projecto de sociedade, valia a pena saber o que aconteceu aos filhos dos homens e das mulheres que se bateram contra o fascismo. Esse é o único elo que temos entre o passado e o futuro, entre uma geração sem liberdade e uma geração que aprendeu a usá-la.” E conclui: “Existem elas, mas não há razão nenhuma para serem só elas. Há milhares de jovens neste país, filhos de gente com história, como elas.”

Reconhece que a qualidade de Mariana e Joana tem que ver com a educação que receberam. “Eu via, reagia — e reajo, leio jornais, falava com a mãe, elas assistiam às reacções, e pouco a pouco passaram a participar da discussão. É evidente que o ambiente em que se vive tem, com certeza, influência. Depois há os amigos que vêm cá a casa, e, se havia um evento ou uma conferência, elas iam connosco. Por vezes as coisas não encaixavam bem, mas ia ficando alguma coisa. Foi um processo natural.”

Insiste na ideia de que há uma passagem geracional, uma “transição de uma sociedade para outra” e é preciso perceber “qual é o impacto disso e como é que isso se processa”. Até porque, “durante muito tempo, houve a ideia de que a juventude era uma geração rasca que estava perdida. Ainda hoje dizem que esta sociedade está parada, que não intervém. Tudo isso são clichés”.

Sobre a possibilidade de as suas filhas poderem ter sido de direita, diz: “Bem, é complexo. Eu não vejo as minhas filhas serem capazes de cometer injustiças. Agora, situá-las em direita e esquerda é outra história. Eu não vou ao ponto de julgar que não há pessoas justas em todos [os espectros partidários]. Há gente naturalmente de esquerda em partidos de direita.”

Camilo Mortágua tem a sua leitura do que é ser de esquerda e aí o conceito de justiça social é determinante. “É do nosso tempo um discurso político do Governo que diz que está muito preocupado com o desemprego, mas só diz, não age.” Há uma “incoerência entre o discurso e a acção”. Ora, o facto é que, frisa, as suas filhas “não enjeitam a acção”. E aí admite que pode haver influência da educação que tiveram e do facto de terem sido criadas no Alvito. “Tem mais que ver com a cultura de matriz rural. A pessoa sabe que não pode falar em cavar, se não plantar a semente, não nasce nada. Na cultura rural, a palavra exige o acto, enquanto a cultura urbana é mais dada ao abstracto. Isso não é evidente.”

Já sobre a visibilidade mediática das filhas, reconhece que sofre “pouco, mas a mãe sofre muito, está sempre em cuidado com elas”. Por ele, quando as vê na televisão, sente uma “enorme satisfação”. Mas insiste no desprendimento, já que diz que também sente satisfação ao “ouvir outras pessoas” e remata: “Dá-me satisfação ouvi-las não tanto por serem minhas filhas, mas por serem competentes.”

Discreto e racional, Camilo Mortágua continua: “Esta história do orgulho e da satisfação entre pais e filhos é assim. Cada um tem a sua maneira de ser e eu não sou muito de exteriorizar sentimentos, o que passa cá por dentro não necessita necessariamente de ser exteriorizado.” E, embora não siga a par e passo as aparições televisivas das filhas, afirma: “Nesse aspecto, muito da minha relação com elas é idêntica com a que tive com um homem, que era o Zeca Afonso, quando ele aparecia na televisão. E pode classificar-se de amor pela personagem que ele era. Mas eu entendo que é preciso ser circunspecto, ser discreto, que esse orgulho que a gente sente tem de ser íntimo, mais do que exteriorizado.”

Por seu lado, as filhas não sentem necessidade nenhuma de serem comedidas nas palavras com que manifestam o que sentem por ser filhas de Camilo Mortágua. Perante a pergunta sobre se o pai é, para ela, um herói, Joana abre um sorriso e solta: “Sim!” Mariana destaca que o pai “teve uma vida muito irregular, viveu em vários países, viveu grandes momentos, eram rebeldes românticos, tinham grande generosidade”. Considera que, “em todos os processos, há uma certa dose de ingenuidade que seria impossível em grupos mais organizados, os meios eram pouco comuns, pelo grau de improviso”.

Os meios pacíficos e o facto de as acções revolucionárias em que esteve envolvido nunca terem produzido vítimas é destacado por Mariana, que frisa que “o sequestro de um navio não é terrorismo”. E justifica: “O meu pai sempre disse que eram acções para chamar a atenção do estrangeiro sobre a situação de Portugal, mas com grande dose de humanismo.” Aponta exemplos: “No assalto ao Santa Maria, à entrada houve troca de tiros e houve feridos, eles pararam num porto para deixar os feridos. Não espalharam o terror. Qual é o terrorista que sequestra um barco e leva três dias a limpá-lo para o entregar?”

Quanto à ocupação da herdade Torre Bela, Mariana é lapidar: “Tenho o maior orgulho pelo que o meu pai fez na reforma agrária.” Lembra que a mãe conta que “era difícil gerir Torre Bela porque as pessoas eram alcoólicas, antes eram pagas em vinho, não resistiam às ordens, eram malnutridas”. E defende que é ouvindo falar sobre esses momentos que “uma pessoa percebe como o país era há 40 anos, a nível da pobreza, da desigualdade”, pelo que “é extraordinário que as pessoas se tenham conseguido organizar em torno de um projecto e conseguido algo para si”. E conclui: “Eu, como qualquer pessoa que não viveu o 25 de Abril nem o PREC, olho para aquela experiência com inveja.”

Também Joana tem na ocupação da Torre Bela uma referência. “Independentemente da participação do meu pai e da minha mãe na ocupação da Torre Bela, a Reforma Agrária faz parte do imaginário de uma geração que é a minha e que não viveu aquilo e de facto não sabe o que aconteceu. Além da importância histórica, aqueles momentos foram protagonizados por pessoas, tiveram avanços e recuos, houve dificuldades.”

Contudo, as adversidades do quotidiano de quem viveu a ocupação da Torre Bela, não alteram a simbologia daquela ocupação e Joana é peremptória a salientá-la. “Há uma geração que vive o sonho de poder viver um sonho daqueles. Um momento em que deixamos de ser uns jovens loucos e passamos a fazer parte de uma maioria. Claro que ninguém de uma geração que aspira ao socialismo, que se define como de esquerda, não desejaria e passaria ao lado de uma experiência daquelas. É uma escola.” E pergunta: “Que revolucionário não sonha viver a revolução?

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