Savanna: a ilusão é a mãe da invenção

Demoraram três anos a dar sequência ao EP de estreia, mas três anos não foram uma eternidade. Dreams To Be Awake é obra de rockers entusiasmados com a electricidade e de exploradores com bata vestida no estúdio. E é muito bom.

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Perante nós, quatro músicos com um percurso comum. Começaram pelo punk e pelo hard-core, momento fundador, e com o espírito independente firmemente apreendido, foram-se abrindo a outros mundo DR

Em 2012 houve um EP, Aurora. Passaram três anos. Considerando que se tratava da estreia dos Savanna, e considerando a velocidade a que as coisas se passam no mundo nesta segunda década do século XXI, três anos são uma eternidade. Mas quando em Setembro do ano passado chegou um novo single, Fancy pants, seguido dois meses depois por um segundo, Gods we are, começou a desenhar-se na nossa cabeça a ideia que a chegada de Dreams To Be Awake, o primeiro longa-duração, confirma.

Três anos não são tempo nenhum e 2015 é o tempo certo para os Savanna – como seria, reconheça-se e elogie-se, qualquer outro. O rock enquanto experiência planante, a pop abrindo lugar ao sonho, a música enquanto experiência de alquimistas do som às voltas com a imaginação nesse laboratório de ideias chamado estúdio. Três anos depois de os vermos pela primeira vez, Dreams To Be Awake é o arranque a sério. Em grande.

Miguel Vilhena, Tiago Vilhena, Pedro Castilho e Diogo Sousa partilham uma esplanada com o Ípsilon numa manhã de sol primaveril. A banda nasceu quando dois amigos de longa data, Miguel, vocalista e guitarrista, e Pedro, teclista, decidiram que era tempo de concretizar uma ideia de banda que germinava. Tiago, baixista, foi convocado por razões práticas (é irmão de Miguel e um tipo com talento). Diogo Sousa é o novo baterista, chegado a meio da viagem. Pessoal entusiasmado com a música que faz. “Conseguir viver disto e aproveitá-lo o máximo de tempo possível é o objectivo. Dos maiores medos que tenho é chegar aos 30 e desistir da música”, dirá quase em final de conversa Tiago Vilhena.

Perante nós, quatro músicos com um percurso comum. Começaram pelo punk e pelo hard-core, momento fundador, e com o espírito independente firmemente apreendido, foram-se abrindo a outros mundo. Aurora já era resultado disso: uma banda a carregar na distorção da guitarra e a criar canções enquanto longas digressões, paredes-meias entre memórias prog e mecânicas pós-rock. Os Savanna são agora outra coisa. Os Pink Floyd à solta numa tenda de circo (psicadélico), os Beatles a partilharem uma boa dose de LSD com Wayne Coyne, dos Flaming Lips, groove digital contemporâneo bem enxertado em canção pop de olhos no cosmos. Parentes dessa atraente família disfuncional que é o psicadelismo dos nossos tempos, filiação que inclui MGMT, Tame Impala, Foxygen ou, um pouco atrás, Animal Collective. Mas, mundo vasto aberto por 50 anos de História, não apreciam particularmente ver-se presos na definição.

“Acho que faz sentido falar do rock psicadélico ao ouvir o nosso álbum, mas a verdade é que o rock psicadélico é um género de há 50 anos e daí até agora aconteceu muito mais”, aponta Miguel Vilhena, também membro da banda de Moullinex (que ajudou nas misturas do álbum). “O termo [psicadélico] pode definir o nosso disco pelas texturas, pela parte do trabalho de estúdio e por o disco ter um lado meio ‘frito’”, continua. O irmão Tiago agarra a deixa: “Se o dissecarmos bem, o álbum é um melting pot de vários estilos, mas acho que conseguimos integrar tudo de uma maneira coerente e, apesar de tanta fusão, flui bem com tanta estética." É difícil não concordar quando ouvimos as camadas de sintetizadores que suportam Fancy pants, extraídos de discos de electrónica ambiental, quando ouvimos sobre elas guitarras fuzz que fazem as delícias de qualquer garageiro, as harmonias vocais evanescentes e os órgãos que os anos 1960 nos legaram como património da humanidade, e a secção rítmica propulsora que faz a ponte entre o space rock de antanho e o rock para pista de dança do presente – tudo trabalhado com uma elegância sonora e uma nitidez que impressiona.

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Essa parte de trip

Dreams To Be Awake nasceu de uma filtragem contínua. Como explicam, não escolheram demorar três anos a gravar o sucessor do EP de estreia. Fizeram música e mais música e chegaram a um ponto em que já a tinham em quantidade suficiente para gravar dois álbuns. Quando começaram a compor mais, perceberam que melhor seria pôr de lado o que já tinham feito e aproveitar a nova vaga de inspiração. “Depois do EP houve um chamamento que era também um desafio: em vez de insistir na ideia de viagem e na exploração de texturas, tentar fazer canções com refrães e estruturas mais clássicas, sem perder essa parte de trip”, diz Miguel Vilhena. Missão cumprida. E com uma humildade quase em sentido contrário à ambiciosa síntese que a música revela. Esta banda que mistura o gosto pela jam, pelo abandono rock’n’roll (preste-se atenção ao rumor eléctrico no final do tema-título), com a experimentação em estúdio (absorvamos nessa mesma canção, antes daquele final, os sons que a povoam: as guitarras subaquáticas, a sugestão de theremins, os ruídos de origem incerta) trabalha com um objectivo simples: “Só queremos criar música que, caso fosse feita por outros, quiséssemos ouvir." Dito assim, parece muito simples. Parece. É uma ilusão.

Dreams To Be Awake cola melodias ao ouvinte incauto. Dreams To Be Awake é uma requintada peça sónica sem vestígios de fragilidade. Os Savanna são rockers que vestem bata como em laboratório à antiga – ouvimos The lab, ou os Beatles de Abbey Road imaginados em investida prog-rock, e é essa a imagem que se forma: “How does it feel to be in the lab?”, cantam.

“Uma coisa de que gosto muito é, por vezes, não se perceber bem o que está a tocar. Não se percebe se é uma guitarra, um sintetizador, um órgão com mil efeitos”, diz Miguel Vilhena. Isso mesmo. Com os Savanna, a ilusão é a mãe da invenção. Sonhemos acordados.

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