Um ensaio de poesia bioenergética

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Telas de pano manchadas em tons antracite e leves notas azuladas ocupam o fundo da cena, numa discretíssima composição cromática com as casuais calças e camisetas, vermelha, azul petróleo, beije e cinza, dos quatro intérpretes.

Palco e público estão unidos sob um mesmo halo de claridade, no anfiteatro montado no próprio proscénio, quando os performers surgem, um a um, silenciosos, detrás das telas. Trazem ao colo fardos de tecido amarrotado e, nos rostos, expressões de perplexidade e espanto. Há um ténue som electrónico, cavo e contínuo, e uma tensão a crescer no ar. Os tecidos, estendidos diante dos corpos, formam painéis móveis: têm impressos o fácies de um símio, a letra “R”, e o que parece o fragmento de uma notícia de jornal. Divagamos sobre possíveis nexos (alude-se ao binómio natureza/civilização?) e o ambiente mergulha num misto de expectativa, comicidade e absurdo.

A deslocação dos painéis revela ou oculta o movimento dos intérpretes, cria separadores entre as suas acções. A sequência, algo arrastada, recupera fôlego na cena seguinte: agrupados à direita do palco, esboçam gestos inacabados e atitudes de interacção inconclusivas, que as suas vozes nomeiam: I was looking at you … I was raising my hand… As frases derivam em monólogos repetitivos que se deixam contaminar e metamorfosear ao sabor da flutuação energética da própria dicção. Aliterado, o discurso intensifica a ambiguidade, e as novas camadas de sentido atingem o seu ponto mais alto quando as vozes conjugadas se transfiguram num bonito cântico polifónico.

Dos corpos cobertos sob os panos acinzentados, escutam-se jogos de elocução cujo rumo aponta um território referencial mais nítido: palavras como "rocks", "waterfalls", "caves", "trees", "woods", "mountains", "holes", "black holes", "strange alterations"… extraídas de versos de William Wordsworth (1770-1850), poeta dos alvores do romantismo inglês, desconstruídos e fragmentados por exercícios de improvisação, configuram analogias com as formas abstractas pintadas nas telas. Presentificam em cena um quinto personagem ausente: a natureza, ou melhor, o seu imaginário, misterioso e impenetrável.

Reactualizando com notável vigor um certo experimentalismo da dança pós-moderna, o ensejo de colocar num mesmo plano hierárquico palavra, texto, cenografia, som, corpos e movimento é, em Satélites, uma variação em torno dos procedimentos livre-associativos que a dupla Dias/Roriz explora desde 2006. Este modus operandi, íntimo e cúmplice, onde a escuta da energia biológica do corpo conduz a poética dramatúrgica, arriscou, porventura, um esbatimento, ao expandir-se aos performers-satélite, Clément Garcia e Raúl Maia. O propósito de driblar leituras lineares do corpo e propensões de representação tendeu, ainda, a diluir-se num registo mais literal: ora aparenta enveredar por uma subliminar mensagem ecológica, ora explicitar (senão mesmo legendar) as próprias premissas criativas - como é o caso do texto, muito bem dito, apesar do conteúdo pouco inteligível, por Vítor Roriz no final. Com intérpretes muito focados, a peça logra, apesar de tudo, envolver-nos numa atmosfera densa, habilmente urdida.
 

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