O PS a caminho da “bloquização”

1. A corrida de Sampaio da Nóvoa à Presidência da República acabou por antecipar o inevitável confronto do Partido Socialista consigo mesmo. O que se viu por estes dias não foi nem manso, nem edificante, mesmo que tenha o mérito de nos ajudar a perceber os adiamentos, as meias-palavras ou as tergiversações de António Costa. O PS “bloquizou-se”, tornou-se uma soma de tendências, de facções, de figuras e figurões que tanto se apressa a divergir sobre o perfil de um putativo candidato presidencial como sobre a mínima luz que o seu líder decida trazer acerca da sua orientação programática ou política. O que está por estes dias em causa, como a mais que provável candidatura de Sampaio da Nóvoa mostrou exuberantemente, já não são simples divergências sobre os contornos de uma alternativa; o que emergiu por estes dias foi um saco de gatos onde vale tudo menos a ponderação e a preocupação em manter a fachada de uma liderança em crescentes dificuldades.

Percebeu-se desde muito cedo que António Costa teria pela frente a árdua tarefa de manter sobre a mesma esfera de influência gente tão diferente como a que se situa nos campos do socratismo, do soarismo, do segurismo ou do guterrismo. Da esquerda contestatária ao centro-esquerda liberal criou-se um enorme teatro de operações onde parece ser impossível articular um discurso sobre as responsabilidades do PS na origem da crise, o apoio do partido ao memorando de entendimento com a troika, sobre a austeridade necessária ou a suficiente e ainda menos sobre os cenários de governabilidade para o futuro próximo. Hoje, não dá para saber o que é o PS e, principalmente, o que quer o PS para si próprio ou para o país.

Os mais optimistas acreditaram que bastava um golpe institucional que mudasse a liderança para que o partido voltasse a recuperar a sua aura e o seu programa. Hoje é mais do que evidente que essa visão idílica do mundo não passava de uma superficialidade. O problema do PS é muito mais do que um rosto ou de uma equipa. O problema do PS é uma grave crise de identidade que dificulta a criação de um projecto político coerente e a consolidação de uma liderança capaz de o aplicar com sucesso eleitoral. Basta uma palavra, para que num ápice apareça uma facção a apoiar e logo outra a demolir, para que uns alimentem o debate saudável enquanto outros se dedicam a mobilizar snipers e montar emboscadas na sombra. Essa desunião ajuda a explicar o mistério das sondagens que mostram um PS incapaz de descolar dos partidos do Governo responsáveis pela aplicação do mais severo e antipopular programa em muitas décadas.

António Costa sabia dessas dificuldades, a sua condição de velho militante e de homem conhecedor dos meandros do aparelho cedo o fizeram perceber que é mais fácil superar numa eleição directa (embora de justificações duvidosas sobre o tempo e o modo como ocorreu) e num congresso os seus opositores reais do que as manobras de bastidores das demais facções. A sua preocupação em enunciar um programa vago e em adiar para vésperas do Verão a apresentação de um programa de Governo justifica-se com uma tentativa de ganhar tempo. Porque António Costa sabe que, mal ponha na rua uma medida concreta que tenha impacte no orçamento (ou, se preferirem, na noção de austeridade), vai ter de responder não apenas aos seus adversários no parlamento como aos seus inimigos no interior do partido, para usar a velha imagem de Winston Churchill.

Toda a polémica e, talvez ainda mais importante, o tom da polémica em torno de um apoio (que parece mais do que certo) a uma candidatura de Sampaio da Nóvoa é por isso o primeiro e inevitável choque de Costa com os custos de mandar num PS tribalizado. O ideal era “apoiar uma candidatura presidencial depois das legislativas” porque, nesta fase, “tudo o que seja dispersar a atenção será um erro político crasso”, como notou Ferro Rodrigues. Mas essa era apenas uma forma de o PS varrer o problema para debaixo do tapete. Tarde ou cedo, a impaciência e o nervosismo haviam de inventar outros candidatos e de promover o grau de dissidência a que assistimos num leque de personalidades que vai de Francisco Assis a José Lello, de Sérgio Sousa Pinto a Mário Soares. Costa terá pensado, e bem, que é melhor enfrentar agora as feras do que adiar o problema para o meio da campanha das legislativas.  

Bem se sabe que este tipo de escolhas implicam uma avaliação de personalidades, implicam discussão, simpatias e hostilidade. O perigo jamais contagiará o PCP, mas, tarde ou cedo, o PSD vai ter de participar nesse debate. Só que enquanto os seus dirigentes e militantes vão assistindo com uma razoável parcimónia ao desfile de preferências entre Marcelo Rebelo de Sousa ou de Rui Rio, no PS o debate tornou-se azedo. E é assim porque hoje a liderança do PSD está muito mais consolidada do que o PS. Como reconhecia esta semana Eurico Brilhante Dias, o “maior trunfo de Costa está por conseguir: a capacidade de unir o PS”. Mais do que a falta de um programa, o que falta ao PS é um rumo definido e um líder consolidado.

A cada dia que passa essa constatação torna-se um problema mais difícil de gerir. Ou Costa pensa pela sua própria cabeça, forma um núcleo duro e arrisca decidir ou com as suas palavras brandas estará a permitir um clima de dissolvência que custará caro. E não basta procurar muito para se saber a dimensão desses estragos: se, como tudo indica, Sampaio da Nóvoa é uma escolha sua, quando a revelar terá de contar já os danos que o seu candidato sofreu com a autofagia do PS. Como ontem escreveu no Expresso Pedro Santos Guerreiro, “o PS matou Sampaio da Nóvoa”. E se Costa continuar a acreditar que a bonomia dos robalos é suficiente para aplacar a ira dos tubarões, talvez um dia venha a descobrir que o PS matou também o seu programa de Governo. Que é como quem diz, uma vitória nas legislativas e a sua própria carreira política.

2. A deputada do Bloco de Esquerda Mariana Aiveca fez por estes dias uma pergunta ao ministro do Emprego e da Segurança Social que deixou Pedro Mota Soares visível e justamente embaraçado. “É ou não é verdade que em 14 nomeações para os centros distritais [da Segurança Social], 11 são do PSD e três do CDS?”, perguntou a deputada. Era verdade, como tem sido verdade que o Governo está a servir-se de uma boa ideia que foi a criação da Cresap (Comissão de Recrutamento e Selecção para a Administração Pública) para camuflar o péssimo hábito de preservar os jobs for the boys.

Como se escreveu num editorial do PÚBLICO, “a Cresap, todos concordam, funciona com isenção”. O problema é que a isenção começa e acaba aí. O PUBLICO quis saber o que aconteceu às 339 propostas que a Cresap aprovou e enviou a diferentes ministérios e constatou que todos os recusados eram de partidos da oposição – e a maioria esmagadora dos contratados eram dos partidos do Governo.

Uma das promessas de Pedro Passos Coelho, a de despartidarizar a administração, ficou assim por cumprir. E, ao contrário do que aconteceu com as políticas fiscais, o Governo não pode dizer que a situação era pior do que se imaginava nos dias das promessas da campanha. Neste caso em concreto, continuou a prática que tende a conferir privilégios aos seus boys em consequência de pura vontade política. Em vez de serem iguais aos outros, o PSD e o CDS foram piores. Porque estão a fazer o que todos fizeram sob o disfarce de uma comissão que criaram para branquear o seu devorismo. 

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