As falhas do Banco de Portugal nas quedas do BPN, BPP e BES

A fiscalização do BdP revelou-se insuficiente para prever os problemas do BPN e BPP e impedir os dois colapsos. Mais tarde, o BES faliu na praça pública. Nos dois momentos, o supervisor não detectou as grandes irregularidades.

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O governador do Banco de Portugal, Carlos Costa REUTERS/Hugo Correia

Concluídas as audições da comissão parlamentar de inquérito aos protagonistas da intervenção e falência do BES/GES há uma conclusão a tirar: a supervisão do Banco de Portugal é hoje mais minuciosa do que a que vigorava em 2008 quando o BPN e o BPP colapsaram. Mas as diferenças esbatem-se pois, seis anos depois da crise internacional ter eclodido, o BdP voltou a não ser eficaz e não evitou o fim do segundo maior banco privado português. E tal como Vítor Constâncio, também Carlos Costa não detectou as grandes irregularidades que contaminaram as contas dos dois bancos.

Em Setembro de 2008, o colapso do Lehman Brother precipitou uma crise bancária com consequências devastadoras: nas horas seguintes, centenas de instituições declararam-se insolventes em todos os continentes. Para travar a queda de outro gigante, o grupo AIG, o governo conservador norte-americano interveio com 78 mil milhões de euros: quase metade do PIB português. Mas não travou o “efeito dominó” que, daí a semanas, desaguou em Portugal: o BPN foi nacionalizado, o BPP decretou falência, a CGD ajudou a salvar a Finantia emprestando, numa primeira fase, 200 milhões.

Passaram entretanto seis anos e o governo de Passos Coelho foi de novo colocado perante incidentes graves: a 31 de Dezembro de 2012 o Estado recapitalizou o Banif em 1100 milhões tornando-se accionista de controlo e, a 3 de Agosto de 2014, o BES desabou à vista de todos e foi salvo com uma injecção (via Fundo de Resolução) de 3900 milhões. O que legitima a questão: a supervisão bancária funciona em Portugal? A resposta tem dois sentidos. Sim, pois por força das novas regras europeias mais estritas, no pós-BPN o modelo de fiscalização tornou-se intrusivo e Carlos Costa tem hoje equipas em permanência nas instituições que supervisiona e para onde envia recomendações e avisos em ritmo quase diário. Não, porque a supervisão voltou a falhar, ao não ter antecipado a falência do BES e tomado medidas para a evitar. 

Qualquer que seja a análise que se possa fazer há uma conclusão a tirar: nos anos que antecederam as falências do BPN e do BES, o BdP “remexeu” nas suas contas, convocou os principais gestores (Oliveira Costa e Ricardo Salgado) e os accionistas e deu recomendações para que saneassem as deficiências. Existia no regulador muita informação.

Nesse período o BdP teve dois rostos, o actual vice-presidente do BCE Vítor Constâncio (de 2000 a 2010) e Carlos Costa que o substituiu e que tem sido o protagonista da transição para a União Bancária Europeia. O BdP tem vindo a recrutar muitos quadros da nova escola financeira, com convívio fácil com os auditores, as agências de rating e a banca de investimento, e, alguns, ainda pouco sintonizados com a cultura e as preocupações de um regulador. E, em Outubro de 2014, as saídas dos responsáveis do departamento de Supervisão Prudencial do BdP para a PwC foram alvo de mediatização. 

Os dados na posse da comissão parlamentar de inquérito (CPI) demonstram que a partir do primeiro semestre de 2013, o BdP conhecia a grande ligação do BES ao GES e a sua exposição descontrolada ao BES Angola, bem como a evolução e a natureza dos sucessivos aumentos de capital que indiciavam a fuga em frente. E tal como fez com o Banif (persuadiu os accionistas a pedirem ajuda à troika com a perda de controlo), o BdP podia ter forçado Salgado, ainda em 2013, a assumir perdas e a ir capitalizar o BES junto da linha pública da troika com 6000 milhões de euros livres (e teria evitado o caso PT).

Em 2007, as inspecções do BdP ao BPN também detectaram situações anómalas, com ausência de reforço de provisões, falta de informação sobre operações de crédito em offshores, práticas comerciais duvidosas - um verdadeiro manual do que não deve ser feito. Mas os indícios no caso BPN remontam à primeira metade da década passada quando vários auditores externos se recusaram a certificar as contas. Mas nos meses antes que antecederam a falência, o BPN apresentava insuficiências financeiras de quase mil milhões de euros, como foi então noticiado pelo PÚBLICO (21/6/2008). Daí poder afirmar-se que a supervisão do BdP ao BPN e ao BES funcionou como detector de problemas e não como seu corrector.

Costa e Constâncio também não foram eficazes a impedir decisões que influenciaram o quadro final das duas instituições. Contrariando as recomendações do BdP, Salgado recorreu a um esquema triangular de venda de obrigações envolvendo o GES, o BES e a suíça Eurofin e, assim, desviou do perímetro bancário cerca de 800 milhões de euros para pagar dívidas das empresas familiares. O ex-banqueiro assinou ainda cartas de conforto a garantir o reembolso de investimentos de clientes venezuelanos. Na CPI, Costa confessou estar surpreendido pelas duas iniciativas. O mesmo fizera Constâncio seis anos antes, no parlamento, ao reconhecer que não imaginava as operações ruinosas do BPN, por não estarem contabilizadas nas contas oficiais, e não saber da existência do Banco Insular, com sede em Cabo Verde (e detido pelo SLN a holding supervisionada pelo BdP), para onde eram canalizados movimentos ruinosos registados num "balcão virtual". 

Durante as inquirições parlamentares Constâncio e Costa muniram-se do argumento da fatalidade: “Quando há gente mal-intencionada, não há muito a fazer.” A tese legitima a questão: se não há remédio, e dado que no limite a supervisão visa impedir as falências bancárias, então para que serve o BdP?

Na década de 2000 os dois bancos foram os promotores de dois centros de poder com uma relação promíscua com a esfera politica tolerada pelas autoridades. Nos órgãos sociais e accionistas do BPN/SLN pontuavam dirigentes do PSD como Cavaco Silva, Duarte Lima, Dias Loureiro, Arlindo de Carvalho ou Rui Machete, e gente ligada aos serviços de investigação e de informação, como Daniel Sanches e António Lencastre Bernardo. Já na Efisa – a banca de investimento do BPN- surgiam figuras alinhadas com o PS como José Lamego ou Guilherme Oliveira Martins.

O BES era considerado o banco do regime com pontes nos partidos do arco da governação que, por vezes, ou atraía para a sua esfera de influência ou era fonte de recrutamento. Os casos mais mediáticos são os de Durão Barroso, Manuel Pinho e Miguel Frasquilho.

Os indícios públicos de falta de condições para o exercício das funções de banqueiro, por parte de Oliveira Costa (BPN) e de Ricardo Salgado ( a partir de 2012) não foram suficientes para o BdP lhes retirar a idoneidade com o argumento de que “se a lei não permite substituir um gestor, não se substitui”. Em meados da década de 90, o ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais de Cavaco Silva assinou um despacho a validar um perdão de juros e multas à Cerâmica Campos com uma dívida fiscal superior a dois milhões de euros (429 744 contos). A empresa de Aveiro, de onde Oliveira Costa é natural, acabou a pagar apenas 910 mil euros. O caso foi investigado por uma comissão parlamentar presidida pelo actual ministro de Passos Coelho, Rui Machete, que acabaria a presidir ao Conselho Superior da SLN. Oliveira Costa foi ilibado. Na sequência do caso BPN, o ex-presidente do BPN foi detido por burla, fraude fiscal e branqueamento de capitais.

Já Salgado falhou em 2011 e 2012 por três vezes o pagamento dos seus compromissos fiscais, e, em 2013 assumiu um alegado “presente” de 14 milhões oferecido pelo cliente José Guilherme. O BdP manteve-o em funções até ao fim. Está hoje a ser investigado por burla, falsificação de documentos e branqueamento de capitais e abuso de confiança.

Quando há falhas de supervisão bancárias, em regra, as responsabilidades são partilhadas com os conselhos de administração, as comissões fiscais, os auditores internos e externos, as agências de rating. Nenhuma destas entidades se pode excluir dos acontecimentos que culminaram no desaparecimento do BES. No dossier falhou a CMVM ao não impedir o banco de vender em larga escala aos seus clientes de retalho dívida do GES (os fundos tinham 80% dos investimentos, 2200 milhões, concentrados em empresas do GES insolventes) e ao ignorar a relação inquinada do GES com a Portugal Telecom (que tinha mais de 90% da sua tesouraria aplicada no GES) expressa, aliás, na documentação que era enviada às autoridades. E falhou a ministra das Finanças, Maria Luís Albuquerque, que em articulação com o BdP, é a última responsável por garantir a estabilidade do sistema financeiro e que perante todos os sinais não foi capaz de antecipar os acontecimentos. Preocupado em não infectar a saída limpa da troika, o Governo de Passos Coelho meteu a cabeça debaixo da areia.

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