Tempos excecionais (II)

Quem deixou voluntariamente de estar à esquerda não quer dançar com ela. É por isso que os novos pretendentes a dançar com o PS não são nenhuma versão portuguesa do Podemos espanhol ou do Syriza.

1. Vivemos tempos de exceção. Tentei explicá-lo aqui há duas semanas: o que vem sendo feito aos portugueses e ao Estado que os deveria representar e servir provocou a mais grave crise da democracia desde o 25 de Abril. Pior do que aquela que conhecemos com o governo do Bloco Central (1983-85) e o FMI, que, já então, aproveitaram para começar a desconstruir a democracia social do 25 de Abril (desnacionalizações, privatizações, reconstituição dos grupos económicos que haviam medrado na ditadura).

Desde 2002 e o euro, os decisores económicos que, no PS e na direita, têm sido recrutados nessa porta giratória aberta entre aparelhos partidários e grupos empresariais, têm concretizado o que os neoliberais definiram como a sua missão histórica essencial: acabar com qualquer correção (Estado de Bem-Estar Social, redistribuição de riqueza através da educação, da saúde e da segurança social públicas) da desigualdade em que se baseia o capitalismo e reinstaurar o direito do mais forte (o patrão, o capital) à dominação económica.

As crises não são capítulos de livros de História. Elas afetam a grande maioria de nós porque dependemos do nosso trabalho e da dignidade com que o desempenhamos. Rouba-se-nos o emprego, o salário, a reforma, a casa, a saúde, a educação. Ofende-se-nos porque se nos atribui uma culpa que não é nossa; humilha-se-nos porque se nos ameaça com mais pobreza se nos rebelamos, quer-se amedrontar-nos.

2. Num ano de eleições como este, a grande maioria dos portugueses quer sair deste pesadelo, deseja a mudança. Muitos deles estão tão descrentes da eficácia do voto e do funcionamento da democracia que não votarão sequer. Mas não nos enganemos: a rutura política em Portugal não se fará por via da abstenção, ou do voto branco e nulo, como aconteceu nos últimos atos eleitorais (em 2011, 6% nas presidenciais, 4% nas legislativas). O sistema aguenta bem abstenções e votos brancos; eles não alteram em nada o funcionamento do sistema político, nem reduzem a sua legitimidade formal (ainda que o façam moral e politicamente). Sistemas políticos como o norte-americano ou o suíço aguentam-se com muito menos participação eleitoral que aquela que se pratica em Portugal.

Desde que a crise se instalou no nosso país, os eleitores portugueses passaram a castigar mais duramente cada governo na eleição seguinte do que o fizeram no passado. Até 2011 não deixaram de usar os dois jogadores do rotativismo para o fazer: o PS contra o PSD, o PSD contra o PS. Ao fim de quatro eleições desde 2002, verificam, mais rapidamente que no passado, que não têm conseguido mudança alguma. Muda o condutor, mas o trajeto é o mesmo.

A grande maioria de quem votar, não se duvide, vai querer castigar a direita de Passos e Portas como já o fez, por muito menos, em 2005. A grande diferença é que o velho instrumento que usavam – o PS – parece-lhes ainda menos fiável do que antes. Já em 2011, ele próprio foi castigado por ter começado a mesma austeridade que a direita logo veio agravar. Só quem acredita que os portugueses escolherão simplesmente entre o mau e o menos mau acredita que o PS de Costa ganhará o apoio deste oceano de descontentes e vencerá confortavelmente as eleições. 2015 não é 2005, muito menos os anos 80 ou 90.

3. A mudança social e política ocorre quando se consegue não deixar secar a indignação e quando a revolta se junta à disponibilidade para discutir soluções com quem coloca os mesmos problemas que nós sentimos. É verdade que ela não se faz só (e muitos pensam que nem sequer prioritariamente) pela via eleitoral. Mas as eleições são uma componente importante da mudança. Nas próximas, não é o PS que fará a diferença, justamente porque não quer inverter o caminho que empreendeu, pela mão de Constâncio, Guterres ou Sócrates, há muitos anos. O PS, como a social-democracia europeia, até se distingue da direita no debate sobre o aborto ou o casamento homossexual (ainda que tenha discriminado mais ainda na adoção) – mas não é de hoje que desistiu de defender o mínimo de democracia social que tínhamos desde o 25 de Abril e se passou para o campo do liberalismo económico, entendendo que a riqueza das nações é produzida pelos patrões e não pelos trabalhadores.

É por isto mesmo que a mudança também não virá daqueles que têm alimentado esta mentira de que o PS não dança à esquerda porque não tem par disponível. Quem deixou voluntariamente de estar à esquerda não quer dançar com ela. É por isso que os novos pretendentes a dançar com o PS não são nenhuma versão portuguesa do Podemos espanhol ou do Syriza.

4. A mudança que mude a sério o curso da nossa vida coletiva, emancipe o Estado da tutela de Bruxelas, do FMI e dos grupos económicos que já sequestraram uma parte importante dos nossos recursos, e retome o caminho da democracia social, só chegará se a esquerda que nunca deixou de ser de esquerda e que se compromete a romper com a austeridade reunir força política suficiente para obrigar à viragem. A tal ponto que seja alternativa viável ao PS e à direita. Aqui como em Espanha, como na Grécia, como em toda a Europa. Essa esquerda – a CDU e o Bloco, fundamentalmente – pode continuar a apresentar-se separada às eleições, apesar de ter saído junta à rua nas grandes manifestações dos últimos anos, partilhar militância sindical, votar da mesma forma no Parlamento. Mas acho que já deveria ter percebido que, dessa forma, limita a sua capacidade de atração de muitos daqueles que querem forçar a mudança mas que não acreditam que ela se faça no mesmo quadro político que até agora tivemos. Este deveria ser o momento para discutir, abertamente e sem sectarismos, a cooperação entre quem, ao longo destes anos, assegurou o enorme esforço de resistência à devastação social, mas que, oferecendo em separado propostas coerentes e sem ambiguidades contra a austeridade, arrisca-se muito a não conseguir transformar em votos a maioria da mobilização cidadã destes anos. A memória das tensões vividas na resistência e na Revolução é muito da identidade de comunistas e bloquistas – mas não é uma memória vivida na primeira pessoa pela grande maioria dos seus ativistas e dos seus eleitores. O Bloco nasceu cheio de preconceitos políticos e culturais contra o PCP; uma grande parte dos comunistas responde(u)-lhe na mesma moeda. Ao fim de 16 anos, e das tensões internas por que os dois partidos passaram (o PCP em 2000-02, o BE em 2011-13), a verdade é que se têm encontrado no mesmo lado da barricada. Em tempos excecionais, parece-me evidente que deveriam dar passos excecionais. E mostrar a quem não se resigna a que tudo fique na mesma que eles partilham um espaço comum onde, no respeito da diversidade, se não trai a confiança. E que pode ser decisivo.

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