Uma ópera com rebuçado dentro

O compositor Ruy Coelho, tão desconhecido como vilipendiado, tem agora uma oportunidade de reabilitação, ajudado por uma nova partitura de Daniel Moreira.

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O Cavaleiro das Mãos Irresistíveis canelaehortela
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Em Agosto de 1916, o editor França Amado, de Coimbra, publicava um "conto em verso" de Eugénio de Castro, intitulado O Cavaleiro das Mãos Irresistíveis, acabado de escrever na véspera do Natal anterior. A inspiração viera de uma passagem da História Genealógica da Casa de Lara (1694), que apresenta Garci Fernández, Conde de Castela, como tendo umas mãos tão formosas que seduziam imediatamente todas as damas, a ponto de ter de as encobrir para neutralizar tal efeito junto daquelas que mais respeitava.

A partir daqui, o poeta imaginou, na Coimbra medieval, o encontro de um jovem castelhano, Dom Sancho, convalescente de um acidente de caça, com Dona Beatriz (filha do alcaide Dom Guterre Lopes e de Dona Mór de Menezes), a qual, contra a vontade do pai, estava decidida a tornar-se clarissa.

As peripécias que se seguiram a este primeiro encontro foram aproveitadas pelo compositor Ruy Coelho para uma pequena ópera, estreada em 1927 no Teatro de São Carlos e bem recebida pelo público de então. É esta ópera, O Cavaleiro das Mãos Irresistíveis, que o Movimento Patrimonial pela Música Portuguesa, através do Ensemble MPMP, agora recupera.

Luiz Ayres d'Abreu, o principal responsável por esta reposição, diz-nos que a ideia surgiu, naturalmente, do facto de ter feito o inventário do espólio de Ruy Coelho, doado à Biblioteca Nacional em 2011: "Ruy Coelho é geralmente apresentado como uma figura musicalmente menor; sempre achei insólito que nunca se explicasse a razão dessa alegada menoridade, e isso incutiu-me curiosidade sobre a sua música. Depois percebi que era também necessário atender ao contexto biográfico, o que me levou a investigar a sua carreira na juventude." 

Luiz Ayres d'Abreu explica que a escolha das obras a recuperar tem sobretudo atendido às possibilidades práticas de as apresentar através de um agrupamento de câmara: "A maior parte das partituras de Ruy Coelho requerem uma grande orquestra. Por isso o ano passado apostámos em duas partituras para formação clássica (Petite Symphonie I e II) e este ano virámo-nos para o Cavaleiro das Mãos Irresistíveis, que é compatível com os efectivos do Ensemble, embora não creia que esteja entre as peças mais interessantes do autor".

Contudo, aquilo que se apresenta no sábado, no Teatro Municipal Joaquim Benite, em Almada, não é apenas a ópera de Ruy Coelho, uma vez que esta dura apenas 40 minutos, tendo sido decidido completá-la com um interlúdio de 20 minutos, Cai uma Rosa, composto por Daniel Moreira, colocado na sequência do Intermezzo instrumental que já figurava no original. Luiz Ayres d'Abreu, que assina o libreto do novo episódio lírico, também baseado no poema de Eugénio de Castro, explica ter aproveitado este parênteses "para explorar coisas que ficavam de fora".

De facto, Ruy Coelho aproveitou do poema apenas o enredo superficial, simplificado em matizes e personagens, enquanto o novo episódio se detém no movimento psicológico de D. Beatriz e, acessoriamente, de Dona Mór, que herda os impulsos namoradeiros que o poeta atribuíra à velha Dona Yseu.

O encenador António Durães tem a convicção de que este diálogo entre 1927 e a contemporaneidade é muito interessante. "São postas lado-a-lado linguagens muito diversas, até contraditórias", inventando-se, no episódio de Daniel Moreira, "um espaço na cabeça de Beatriz, uma perversidade, que implica decepar um enforcado". Ela consegue antecipar uma série de pensamentos, "que a levam a tomar posição sobre que amor irá prevalecer, o de Deus ou o dos homens".

Para Cátia Moreso (Dona Mór), o novo episódio permite revelar uma dualidade na personagem, dando-lhe uma outra dimensão, muito bem-vinda para a intérprete. Isto, apesar da dificuldade técnica da partitura contemporânea, que não dá o mesmo tipo de apoio ao solista que a ópera original, providenciando parcas referências orquestrais. Joana Seara (Beatriz) concorda, sublinhando que, no novo episódio, "muito do que nós fazemos vai colorir todo o texto".

Segundo o maestro Jan Wierzba, a experiência prova que "vale a pena fazer música que está esquecida com gente disposta a esmiuçá-la" e que a conjugação de património e contemporaneidade é "musicalmente marcante".

Na verdade, o espectador será confrontado, desde logo, com uma partitura algo convencional, de índole rapsódica (apesar do tema recorrente), com números bem delimitados em que se destacam as intervenções de D. Sancho no início de cada cena (a primeira definindo uma queixosa "espanholidade", a segunda carregada de sentimental lirismo). O episódio central, animado em fundo por um vídeo de Mário Gajo de Carvalho, tem uma densidade musical e dramática envolvente, exigindo toda a atenção. A continuação da ópera permite nova distensão.

O espectáculo, que conta com uma sóbria cenografia de Ana Gormicho, é servido por um profissionalismo sem mácula: para além dos nomes já citados, destacam-se o barítono Job Tomé (D. Guterre) e o tenor Marco Alves dos Santos (D. Sancho), que não desperdiça as oportunidades propiciadas pelo seu papel.

Ruy Coelho, cuja música gravada é frequentemente afectada pela má qualidade da execução e da captação sonora, ficaria certamente deliciado.

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