Ele tem, terá sempre, uma guitarra junto ao peito

Celebrados num CCB repleto, os 50 anos de carreira de António Chainho mostraram-no em plena forma: a sua guitarra foi voz soberana, numa conversa (irregular) a muitas vozes.

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António Chainho com Ana Bacalhau no CCB João Sousa

Terá sido dos mais heterogéneos espectáculos de António Chainho, como o disco aliás anunciava. Mas isso não impediu que, sexta-feira, 10 de Abril, a sua guitarra brilhasse no CCB, majestosa, como rainha da noite.

Logo desde o início. Primeiro com Escadinhas do Duque, célebre variação de sua autoria em torno de um tema de José António Sabrosa; e depois com Cumplicidades, belíssimo instrumental que integra o seu mais recente disco e que, aliás, lhe dá título. Não só título, também mote: a ideia subjacente ao tema fê-lo atrair a este projecto muitas e distintas vozes. Ao falar disso, perante a plateia que encheu o CCB na noite de sexta-feira 10 de Abril, Chainho comoveu-se e parou de falar. Mas logo em seguida, para nos sossegar, informou que um médico lhe instalara no coração uma válvula “que dura 150 anos”. Ou seja: pode voltar à guitarra mais vezes.

Seguiu-se o desfile de vozes convidadas, todas elas “cúmplices” no disco. Primeiro foi Filipa Pais, com Volta não volta, numa interpretação certeira e dedicada. Depois entrou em palco Ana Vieira e, juntas, uniram vozes no telúrico Vou daqui, um dos temas fortes do disco. A solo, Ana Vieira deu a Riso de Cabíria (com letra de Tiago Torres da Silva) um estranho toque rétro de outras eras (podia, com facilidade, integrar a banda sonora de um filme português dos anos 40) acabando por revelar-se, tal como no disco, mais eficaz em Agnes, com ligeiro toque Broadway.

Chainho, parecendo secundarizar-se, mantinha a guitarra atenta e no comando. A entrada de Helder Moutinho alterou a ambiência da sala. O excelente Uma guitarra junto ao peito soou, na sua voz, como devia (austero e tocante), saindo apenas prejudicado pelo tom “metalizado” que o microfone artificialmente conferiu à voz. Uma injustiça que quem ouvir o disco esquecerá.

Helder ficou, ainda, para um inesperado (mas bem conseguido) dueto com Paulo de Carvalho, naquele que é o “rei” dos fados: o Menor. Desafiaram-se em quadras, em pose fadista, eloquentes mas sem excessos. Depois dos merecidos aplausos, Paulo ficou sozinho para cantar, no seu estilo, aquele que é (com letra sua) o tema mais biográfico do disco para a carreira de Chainho: Fado áureo. E fê-lo superando a versão gravada, dando à voz um rumo mais caloroso e natural.

Novo instrumental: Deambulando pelo Alentejo. Desta vez com Kajó Soares, jovem saxofonista do Redondo cujo pai convenceu Chainho a ensiná-lo a tocar guitarra. Deu-lhe algumas lições, é certo (contou Chainho em palco), mas o que mais o surpreendeu foi ouvi-lo improvisar ao saxofone tendo por base um disco. Foi por isso que Kajó Soares surgiu no palco do CCB no tema que, na gravação, coube ao trompete de Raul d’Oliveira. Tocou e agradou, sem deslumbrar.

No desfile de vozes veio depois Paulo Flores, nome maior da música angolana que acaba de editar mais um notável disco, O País Que Nasceu Meu Pai. Cantou Meu coração, com letra que escreveu para uma música de António Chainho e, tal como no disco, confirmou-se o equívoco: querendo vestir um “fato” alheio, desfigurou-se. Num híbrido de fado, canção ligeira e melodias brasileiras, aquilo que é a mais-valia da sua expressão musical ficou pelo caminho. Foi pena.

Tal como foi pena saber que Sara Tavares tivesse, devido a um desastre, que vir para o palco do CCB de muletas. Mas não foi pena ouvi-la cantar, pelo contrário. Rumo di mar (em crioulo cabo-verdiano) teve ali a interpretação merecida, e às muletas contrapôs Sara um sorriso vencedor.

Uma brilhante Rapsódia Fadista, daquelas que permitem à guitarra as pausas, as acelerações e as “respirações” que só um grande músico sabe dar (e Chainho esmerou-se, de novo, aqui), abriu caminho à melhor surpresa da noite: Ana Bacalhau (dos Deolinda), profissionalíssima, presente de corpo e alma no papel que lhe coube, primeiro a cantar Certo dia (já de si um achado, na mescla de fado e ritmos tradicionais portugueses) e depois Os Argonautas, esse fado tropical de Caetano Veloso, num inesperado (e bem conseguido) dueto com Pedro Abrunhosa. Que, talvez embalado pela experiência, deu em palco nova e mais interessante vida a Breve e belo é o cisne, tema que escreveu para o disco Cumplicidades de Chainho. Antes o tivesse gravado assim.

Por fim, mais um instrumental, as Variações (em Lá) sobre o Fado Lopes, variações que há muitos anos atrás valeram uma recepção gloriosa ao então magala António Chainho, ao tocá-las numa guitarra emprestada num café para as bandas da Praça do Chile, em Lisboa.

Aplaudido de pé, durante vários minutos, com todos os músicos e cantores à beira do palco, Chainho voltaria para dois encores. Primeiro, Aprender a sorrir, canção que no disco esteve a cargo de Vanessa da Mata e que no CCB foi cantada por Ana Vieira e Filipa Pais, a segunda em português de Portugal e a primeira com um (dispensável) sotaque brasileiro. Resultou numa graça sem graça.

Mesmo a fechar, até porque ficar por ali não abonaria em favor do espectáculo, Chainho voltou à guitarra e às variações e, dando espaço aos percussionistas para mostrarem o seu talento em solos de energia rítmica, mostrou sobejamente as razões pelas quais lhe chamam “mestre”.

Se alguém tem uma guitarra junto ao peito, como diz o fado com letra de Helder Moutinho, é ele. Juntou-se-lhe um dia e nunca mais o largou, mesmo quando recolhe nocturnamente ao estojo.

Os fortes aplausos, no final, “cantaram-lhe” como merecia os parabéns por estes 50 anos.

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