Património coreográfico

Vêm estas questões de património e contemporaneidade a propósito do programa da CNB, uma homenagem ao Ballet Gulbenkian, que pode ser visto hoje e amanhã no Rivoli

O que sucede a uma companhia de um coreógrafo, e às obras daquele, quando ocorre o desaparecimento do criador?

Ocorridas com menos de um mês de intervalo, em 2009, as sucessivas mortes de dois coreógrafos da grandeza de Pina Bausch e de Merce Cunningham tiveram como consequência respostas de todo diferentes, de algum modo mesmo opostas.

O Tanztheater Wuppertal de Bausch continuou a existir, e se não é concebível ver uma peça tão emblemática como Café Müller sem a própria Pina, ainda assim é possível continuar a ver obras tão seminais como KontakhofNelkenViktorPalermo, PalermoMasurca Fogo, etc.

Pelo contrário, por disposição testamentária de Cunningham, a sua companhia fez uma derradeira digressão e dissolveu-se; por outra disposição o coreógrafo deixou estabelecido um Legacy Plan nos termos do qual, tendo sido devidamente preservada toda a documentação, um expressamente criado Trust, além da missão de preservação, pode autorizar o “licenciamento” de obras, para serem montadas por outras companhias – mas a noção de ver obras de Cunningham dançadas por outrem que não a sua companhia, e para mais a hipótese de as voltar a ver interpoladas num mesmo programa com coreografias de outro, tem qualquer coisa de aberrante.

Estes dois exemplos, de criadores máximos, deixam também entender diferentes facetas de um problema de fundo das artes de palco: como preservar um património, como transmitir uma memória? E o que sucede quando deixa de existir uma companhia não de um coreógrafo, mas de uma instituição, de uma cidade, etc.?

É a questão que concretamente se coloca com um imenso vazio, a vários títulos, deixado pela extinção do Ballet Gulbenkian, em 2005.

A história da companhia é ela própria um condensado da história do bailado em Portugal no último meio-século, primeiro simultaneamente apresentando ballet clássico e contemporâneo, depois, a partir de 1977/78, quando surgiu a Companhia Nacional de Bailado, de vocação clássica, votando-se então o Ballet Gulbenkian especificamente para a criação contemporânea, vocação prosseguida mesmo quando começaram a surgir companhias específicas de criadores, de resto quase todos eles formados e/ou revelados no Ballet Gulbenkian.

Mas hoje também a Companhia Nacional de Bailado não é a mesma das suas origens em 1977, mas muito mais, e saudavelmente mais eclética. Certamente que uma companhia nacional tem de continuar a apresentar o grande reportório clássico, como o dos Ballets Russes ou o neo-classicismo de um Balanchine (e, pfv, dançem, dancem, as coreografias de Mr. B., reponham por exemplo na mais próxima ocasião o maravilhoso Agon). Mas uma companhia nacional renovada, como é o caso da CNB, e da CNB com a esclarecida direcção de Luísa Taveira, é também uma instituição de criação e património contemporâneo.

Vêm estas questões de património e contemporaneidade a propósito do programa da CNB, uma homenagem ao Ballet Gulbenkian, 10 anos volvidos sobre a sua extinção, que depois da sua apresentação em Lisboa, no espaço próprio da companhia, o Teatro Camões, pode ser visto hoje e amanhã no Rivoli, no Porto, como voltará a suceder em Évora, no Festival de Almada e, de regresso a Lisboa, no Festival Ao Largo – porque, nunca é demais sublinhá-lo, de todas as instituições culturais ditas “nacionais” ou na dependência directa do poder central, a CNB é de facto a única que cumpre uma missão efectivamente nacional e de itinerância pelo território.

Promover um espectáculo de Homenagem ao Ballet Gulbenkian é suscitar fundas memórias, pelas peças concretas apresentadas e por outras que lhe surgem associadas (por exemplo outras obras que o mesmo coreógrafo tenha criado para aquela companhia) e também, não se pode esquecer, pelo trauma da extinção abrupta, sendo assim de registar que o programa foi concretamente apoiado pela Fundação, e que ao fim de 10 anos, pela lavra de Artur Santos Silva, presidente do C.A., a Gulbenkian tem enfim uma palavra pública de reconhecimento pelo Ballet.

Não creio, nem aceito mesmo, que um discurso crítico, que um modo crítico, seja “normativo”, isto é, que teça considerações e interpretações não sobre o que uma obra ou objecto artístico concretamente é, mas sobre antes o que “poderia” ser ou, pior ainda, o que “deveria” ser.

Contudo uma proposta programática como esta Homenagem é de âmbito diferente e, tanto mais quanto traz de novo fundas memórias, há interrogações e mesmo perplexidades sobre a escolha concreta de quatro coreografias.

Pese ainda a forte e imediata recordação de ver Isabel Queiroz e Ger Thomas a dançar Twilight de Hans von Manen, essa está longe de ser das mais relevantes entre as várias coreografias daquele que o Ballet Gulbenkian apresentou – basta pensar, por exemplo, em Canções sem Palavras. E custa-me perceber – ou então percebo pelas mais imediatista razões – a inclusão de Minus 16 de Ohad Naharin, de um brilhantismo superficial e mesmo demagógico, desse tipo de feel good piece para encerrar um programa em descarado apelo ao público, os bailarinos indo inclusive buscar espectadores e trazê-los para dançar no palco, quando um grande coreógrafo, e que para mais foi aquele que mais peças montou na Gulbenbenkian, Jiri Kilyan, é ignorado.

Posto isto há outras questões e mais tocantes.

Devo dizer que a 1ª vez que fui ver este programa não tinha lido nenhum texto, nem inclusive tido tempo de ler as notas antes de entrar na sala. Estava a ver Treze Gestos de Um Corpo de Olga Roriz, com o elenco feminino (já lá iremos) e de imediato me veio a memória dos bailarinos homens, quando da estreia, Gagik Ismailian, Francisco Rousseau, José Grave, João Natividade, Benvindo Fonseca, etc.!

Logo depois, e ainda antes de um intervalo, fiquei desorientado perante Será Que É Uma Estrela? de Vasco Wellemkamp. Embora grandes peças de conjunto, como Danças para Uma Guitarra (com Carlos Paredes e Luísa Amaro em palco) e Amaramália sejam das mais famosas do Vasco, ele sempre foi basicamente um neo-clássico, como especialmente se patenteou numa série de pas de deux, sempre com Graça Barroso. E esta peça, embora com três rapazes e duas raparigas, é de facto uma sucessão de trêspas de deux, o rapaz do 1º dançando também o 3º.

Pois bem, e daí a desorientação, eu rebobinava mentalmente as coreografias do Vasco para o Ballet Gulbenkian, e não me conseguia lembrar desta. A razão é afinal simples, mas ainda mais tocante: embora num programa deste (mas a parceria Barroso-Wellenkamp é um dado marcante do historial do Ballet Gulbenkian) é sim uma obra nova, uma póstuma carta de amor a Graça Barroso.

E voltei, evidentemente para ver Treze Gestos para Um Corpo, com o elenco masculino, uma alternância que é inerente à obra. Mas não há volta a dar: a fisicalidade e energia das peças da Olga, que nesta tem uma das suas máximas expressões, é muito mais acentuada com homens, tanto mais, aliás, se se recordar que a própria construção desta coreografia, como de outras, tinha um intérprete privilegiado, Gagik Ismailian.

Evocadas as memórias, assinalada a Homenagem, presta-se então também o devido tributo ao notabilíssimo naipe de bailarinos deste programa e da CNB.

 

 

 

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