A longa viagem do rei poeta Al Mut’amid

Músicos portugueses, espanhóis e marroquinos reuniram-se para seguir os passos de Al'Mutamid, o rei poeta nascido em Beja, rei em Sevilha, agrilhoado em Marrocos. Um álbum que é um encontro, um testemunho, um ideal

Foto
Janita Salomé, Filipe Raposo, Quinté, Jamal Ben Allal, Eduardo Paniagua, Cesar Carazo e El Arabí Serghini DR

O início é solene, com o canto sufi a erguer-se entre as notas sofridas do violino. O início coloca-nos num lugar e num tempo. Canta o marroquino El Arabí Serghini, toca o também marroquino Jamal Ben Allal. Estamos muito longe e muito perto, no terreno fértil da memória. Estamos muito longe, imersos na cultura árabe marroquina. Estamos muito perto: há algo de indefinível, qualquer coisa na cadência da voz e nos voltejar do violino, que sentimos estranhamente próximo.

Mais nos aproximaremos à medida que avançamos em Al-Mu’tamid Poeta Rei do Al-Andalus, álbum que é um encontro, um testemunho e, no limite, um ideal. Junta os portugueses Janita Salomé, Filipe Raposo e Joaquim Teles (Quiné), os espanhóis Eduardo Paniagua e Cesar Carazo e El Arabí Serghini e Jamal Ben Allal. Reuniram-se para dar música à vida de Al Mu’tamid, nascido em Beja em 1040, jovem em Silves, rei da Taifa de Sevilha, morto em 1094 no cárcere em Aghmat, nos arredores de Marraquexe, para onde fora desterrado, agrilhoado, após perder o seu reino.

Al Mu’tamid, rei e poeta, corporiza a glória do Al Andalus, o território árabe peninsular que foi durante sete séculos centro de cultura, artes e ciência, ponto de encontro e convivência entre povos e credos. O ideal deste disco é a representação desse espírito em música, seguindo as palavras e a biografia de Al Mutamid. Portugal, Espanha e Marrocos encontrando-se num património comum que a religião e a política foram esbatendo ao longo dos séculos.

“O espírito do Al Andalus existe actualmente como ideia”, diz o tunisino Abdeljelil Larbi, professor de Literatura Árabe Contemporânea no ISCTE, em Lisboa, e que colabora no projecto enquanto tradutor e consultor. “Depois do 11 de Setembro voltou a ser estudado como modelo de convivência cultural e de progresso. Foi um modelo que ficou congelado durante séculos, mas temos que voltar a chamar a atenção para ele. O mais importante é não ficarmos pelas universidades e pelos colóquios. Por isso é que gostei logo deste projecto. Hoje em dia, a música e o cinema documental são das formas mais importantes para apresentar modelos para a sociedade”.

O modelo, aqui, é a vida de um homem e a sociedade de que se rodeava. Larbi conhece a história de Al Mu’tamid desde muito novo. Encontrou-o nos programas da escola –é um “elemento fundamental” na história da literatura do Magrebe. Chegado a Portugal há 12 anos, percebeu também que na história da literatura árabe em Portugal Al Mu’tamid “é o grande poeta”.

Adalberto Alves, poeta e ensaísta, também colaborador em Al Mu’tamid Poeta Rei do Al-Andalus, distinguido pela UNESCO, em 2008, pelo seu trabalho na divulgação da cultura árabe, aponta que aquele rei viveu de forma “tão rica e diversificada que se transformou em mito”. Ao mesmo tempo, é-nos muito real: “ao contrário do costume do seu tempo, da poesia árabe clássica, era muito confessional”. Encontramos na poesia de Al Mu’tamid a glória da guerra e o ardor da juventude, encontramos a dor do exílio e os lamentos a Deus. Estão lá a paisagem urbana e natural de Silves ou Sevilha, bem como o deleite perante os amores ou o doce sabor do vinho – “pois que o fresco vinho e o alaúde te guardem na beira do caminho”, ouvimo-lo agora na voz de Janita Salomé. “É dono de versos mais curtos e mais leves, sem o lado ortodoxo da poesia e literatura da sua época”, descreve Abdeljelil Larbi, que refere a curiosidade de, nele, o tema da saudade, tão caro à cultura portuguesa, surgir como referência fundamental.

Um colectivo que é um novo ser 
Ouvimos o disco e, nele, a Evocação de Silves, poema de saudade pela cidade cantada em castelhano sob cantiga medieval espanhola. Ouvimos depois o piano de Filipe Raposo e a voz aveludada de Janita Salomé entoar o mesmo poema: “Quantas noites passei, deliciosamente, junto a um recôncavo do rio, / com uma donzela cuja pulseira rivalizava com a curva da corrente” – eis versos árabes em tradição alentejana que se transforma em canção contemporânea. Ouçamos mais. A Ibn Ammâr, elegia de Al-Mu’tamid ao amigo poeta que acabaria por morrer às suas mãos após um acto de traição. No início a austeridade imponente, o canto aos céus de Serghini. Depois, o ritmo luxuriante e envolvente da dança medieval trazida da Andaluzia, que desembocará no romantismo (moderno ou intemporal?) das notas arrancadas ao piano por Filipe Raposo. São quase nove minutos de música. Música inspirada e inspiradora que explica da melhor forma toda esta viagem.

Nesta música, está representado “um território em continuidade que contém a vida e as tradições comuns de povos que compartilham um sentido para a vida: amor, luxo, sensibilidade, sensualidade, luz, energia e espiritualidade”. Assim o descreve em entrevista por mail Eduardo Paniagua, arquitecto e músico que conta 45 anos dedicados ao estudo e interpretação de música medieval. Foi fundador do grupo Música Antigua e da editora Pneuma que, desde os anos 1990, se dedica à transcrição e preservação fonográfica daquele legado musical.

Foto
Eduardo Paniagua e Cesar Carazo representam a componente espanhola do projecto DR

Eduardo juntou-se ao projecto trazido pelo arquitecto e realizador Carlos Gomes. O disco que pretende ser mais que um disco foi ideia dele. Foi a forma de dar vida ao fascínio pela cultura árabe que nasceu quando se deparou com O Meu Coração é Árabe, colectânea de poesia árabe compilada por Adalberto Alves. Das palavras dos poetas passou à procura do território e das gentes do Norte de África. E imaginou que poderia, recriando os passos de Al Mu’tamid, reconstruir essa experiência de partilha. Convocou o pianista Filipe Raposo, músico com percurso ecléctico que podemos encontrar ao lado de Janita Salomé ou Vitorino, acompanhando sessões de cinema mudo na Cinemateca ou explorando a sua voz musical em álbuns a solo como First Falls.

Feito o convite, Filipe lembrou-se imediatamente de Janita, “por ter essa herança arábica no canto”, conta desde Estocolmo, onde frequenta actualmente um mestrado. Depois recrutou Quiné, “que acaba por ser o percussionista com maior identidade portuguesa”. Entretanto, Carlos Gomes sugeriu Eduardo Paniagua, este trouxe a voz e a fídula (viola de arco medieval) de Cesar Carazo e referiu os nomes de El Arabí Serghini, respeitado cantor marroquino, e de Jamal Ben Allal, violinista e, enquanto presidente do Conservatório de Tânger, alguém com um conhecimento profundíssimo das tradições musicais do seu país e da sua região.

Enquanto os músicos se encontravam, trocavam ideias e começavam a preparar a música que apresentaram pela primeira vez em Lisboa e em Beja em Fevereiro de 2014, Carlos Gomes seguia a rota de Al Mutamid, filmando esse percurso que termina num discreto mausoléu em Aghmat, erguido pelo reino marroquino ao rei ali caído em desgraça. As imagens recolhidas, que pretende ver transformadas em filme (tenta ainda reunir apoios para o poder concretizar), servem de guia visual dos concertos.

Carlos Gomes tem uma crença “quase ilimitada” no que pode resultar de todo o projecto. Tem agora nas mãos um disco que o entusiasma e do qual se orgulha. E tem a memória da reacção do público aos concertos. “Uma adesão imediata, como se a sonoridade fosse familiar, e isto independentemente do extracto social ou cultural. É uma ideia muito bonita deste projecto: ir para além do conhecimento musical que o público possa ter sobre aquilo que está a ser tocado”.

Explica o director musical Filipe Raposo que se procurou criar no álbum uma viagem pelo tempo, mas sem ordem cronológica definida: “a parte marroquina é mais ancestral, a Idade Média e o renascimento chegam com os [músicos] espanhóis, a contemporaneidade com a parte portuguesa e os originais compostos por mim e pelo Janita”. Com os músicos a alimentarem-se uns dos outros, “com a premissa de não invadir terreno alheio, mas sem temer intromissão”, chega-se a este “colectivo que é um novo ser”. Um novo ser que nasce da surpresa do reencontro.

O ano passado, quando dos concertos de apresentação do projecto, Janita Salomé, cujo fascínio pela herança portuguesa surge reflectida em álbuns como A Cantar ao Sol (1983) ou Lavrar o Teu Peito (1985), contara que ao ouvir El Arabí Serghini interpretar uma canção tradicional marroquina se surpreendera com as semelhanças com uma moda alentejana. Cantou-a e, por sua vez, surpreendeu Serghini. “Ficou primeiro estupefacto, depois admiradíssimo, depois satisfeitíssimo”.

Como nos diz Filipe Raposo, o encontro entre os sete músicos que gravaram o álbum agora editado tornou óbvio que “a questão territorial é apenas uma questão política”: “Na voz do Serghini está a voz do Janita e na voz do Cesar está a voz do Serghini”. Como acrescenta Eduardo Panigua, “encontram-se em cena neste projecto muçulmanos, crentes cristãos, agnósticos e talvez ateus. Com a admiração e respeito mútuo entre nós talvez possamos oferecer um testemunho de amizade, que é melhor que um de tolerância”.

Três territórios separados por fronteiras mas unidos por uma cultura comum encontram-se para dar música a um poeta. Dez séculos depois, Al Mu’tamid volta a ser mecenas. Um mecenas espiritual que é também um guia iluminado.

Sugerir correcção
Comentar