Goa revista e experimentada

Goa em 1963, católica, cheia de história colonial portuguesa, visitada por um inglês: eis o ponto de partida deste livro de Paulo Varela Gomes divertido e sem género fixo

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O olhar de Paulo Varela Gomes desafia em muitos aspectos o que a ciência historiográfica fixou Daniel Rocha

Era uma vez em Goa foi publicado numa colecção de livros de viagens, mas está longe de se conformar às convenções desse género literário. Também não é uma fábula (como a fórmula do título pode levar-nos a supor) nem um romance histórico. Mas ele é um pouco de tudo o que dissermos que ele não é, e inventa o seu próprio género, como, aliás, os outros dois “romances” do autor publicados desde o início de 2013 (por uma nota final, ficamos a saber que este livro foi escrito antes desses que o antecederam na publicação). Seguindo a mesma lógica de definição, podemos dizer que há nele a prosa romanesca, mas não o romance; há a tematização ensaística de ideias, mas não o ensaio. E tudo isto, que é mais fácil descrever pela negativa, é temperado pelo humor. Aquilo a que geralmente se chama prosa, independentemente do género, é o que marca toda a escrita literária de Paulo Varela Gomes.

A contingência biográfica não é despicienda, neste caso, como nos lembra Ivan Nunes, num prefácio onde classifica este livro como “um divertimento”: Paulo Varela Gomes foi delegado da Fundação Oriente, em Goa, em 1996-98 e 2007-09. Este livro não resulta pois, de uma viagem à Índia, de uma daquelas “experiências” pontuais com a Índia de muitos escritores ocidentais. Aqui, a questão é outra, e incide quase sempre sobre lados menos visíveis para o visitante convencional. Por exemplo, ou sobretudo, a herança portuguesa em Goa. Ponto prévio fundamental: a acção situa-se em 1963, dois anos depois de Goa ter deixado de ser portuguesa, na sequência de factos e atribulações militares que são aqui várias vezes evocados. E o leitor é convidado a visitar e a entrar em discussões histórico-sócio-culturais através de um forasteiro inglês, chamado Graham, vindo de Bristol. Não é um hippie, como muitos que por essa época se estabeleceram naquelas bandas, não viaja com a Siddartha, de Hermann Hesse, na mochila, mas é um homem daquele tempo de grandes optimismos culturais e políticos. Mas, ao olhar e à voz deste narrador, sobrepõe-se às vezes (mais vezes, aliás, do que as explícitas) o “autor”, que não se coíbe de intervir em notas de rodapé e num capítulo final que se chama “Interrupção definitiva do autor”, que é uma maneira de dizer algo deste tipo: “vamos lá acabar com isto, de maneira arbitrária, porque desde o início que não se caminha para um desfecho, e quem pode exercer aqui o arbítrio sou eu”.

É fácil adivinhar que esta “história” fornece matéria abundante para um campo disciplinar hoje tão em voga: os estudos pós-coloniais. Mas o olhar de Graham e das outras personagens com quem ele se vai cruzando (goeses e estrangeiros como ele) não é determinado – e seria um anacronismo se fosse – por essa metodologia analítica e interpretativa. A história colonial, os seus rastos e as suas desventuras finais estão bem presentes neste livro e pode-se mesmo dizer que constituem a sua matéria-prima (é quase exclusivamente a Goa católica, com as suas igrejas, e não a Goa hindu, que é revisitada). Mas tudo isso emerge na economia romanesca, ficcional, do livro, o que dá azo a visões muito livres, sem preconceitos ideológicos e com muito pouca correcção política. E elas surgem a maior parte das vezes sob a forma do diálogo e da discussão entre as personagens. Sendo Platão e o platonismo várias vezes evocado, não é descabido pensar que o método dialéctico do simpósio perpassa em muitas das páginas de Era uma vez em Goa.

O grande escritor italiano Giorgio Manganelli escreveu um Esperimento com L’India, resultante de uma viagem que fez em 1975. De Goa, disse ele, nesse livro de reportagem, que no projecto original do Criador ela devia ser a Arcádia. Nalgumas passagens do livro de Paulo Varela Gomes nós percebemos o que é a natureza efusiva deste território, mas não exactamente de extracção arcádica. No humor que perpassa em todas as páginas deste livro, algum dele advém da experiência de Graham, um inglês branquinho, submetido às exuberâncias climáticas e naturais daquelas paragens que ele está a visitar pela primeira vez. Mas é sobretudo nos jogos da tradução, na passagem do inglês para o português e vice-versa, que está a grande fonte humorística do livro. De resto, este trânsito permanente entre as duas línguas determina toda a forma de narrar e é responsável por um dos aspectos mais sofisticados do livro. Mas há ainda um episódio central e muito curioso: uma das pessoas alojadas na mesma pensão de Graham é um seu ilustre homónimo: Graham Greene, que se torna uma das personagens deste livro. Ora, o escritor inglês, informa-nos uma nota de rodapé assinada pelo autor, esteve de facto em Goa em 1963 e escreveu um texto publicado no Sunday Times, em Março de 1964, intitulado Goa, the Unique, que surge traduzido, num apêndice de Era uma vez em Goa. A intromissão de mais um inglês, para além do protagonista, reforça o “método” com que no livro de Paulo Varela Gomes se olha a Goa que tinha sido portuguesa. Um olhar que desafia em muitos aspectos o que a ciência historiográfica fixou.

 

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