Vamo entrá no caldeirão de Tatá?

Tem um pé na cidade e outro no campo – o cérebro está no cosmos, que lhe envia canções. É Tatá Aeroplano, dos melhores segredos da música brasileira e vai trazer a Portugal os seus passeios psicadélicos.

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Esta quarta, quinta e sexta em Lisboa (MusicBox), Ílhavo (Centro Cultural) e Porto (no Passos Manuel)

Com Tatá não há cá tabu: não há lugares marcados, o entrevistado senta-se na cadeira do entrevistador e a meio da conversa por telefone estamos a trocar emails transa-atlânticos: ele a transar com a música portuguesa que eu lhe mandava por mail, eu a transar com a música brasileira que ele mandava por mail: “Estou escutando agora o Fausto”, escreve a dada altura, “muito bom, muito bom mesmo”, acrescenta, antes de fazer uma pergunta que revela o seu fascínio: “O que é essa canção Porque não me vês!? Absolutamente maravilhosa! Valeu pela dica”. Isto não é comum – mas também nada parece ser comum neste homem de 38 anos que esta quarta, quinta e sexta se apresenta, respectivamente, em Lisboa (no MusicBox), em Ílhavo (no Centro Cultural) e no Porto (no Passos Manuel).

O incomum, aliás, é algo que o atrai: a primeira faixa do seu último disco a solo, que não é bem um disco a solo, chama-se Na loucura, abre com guitarra e voz (solta, livre), antes de explodir com guitarras e metais e voz ensandecida, a atirarem-se a mais de seis minutos, pontilhando de psicadelismo a música de raiz brasileira que marca a sua obra. O álbum, de 2014, chama-se, apropriadamente num homem que repete vezes sem fim durante a entrevista “Tô louco”, Na Loucura e Na Lucidez – e é uma daquelas pérolas que a música brasileira nos oferece de quando em vez.

De onde raio vem esta música? Só para chatear Freud, a culpa não é da mãe, é do pai, e a resposta vem numa regressão no sofá da chamada telefónica: Tatá começou “a compor desde garoto”, desde “os seis anos de idade”. Fazia letra e melodia – ou antes, o seu “cérebro era ocupado por melodias de voz e letras”. De modo que quando as melodias lhe surgiam “corria para o gravador a cantar. A primeira melodia que fiz, fiquei assustado”, confessa, apesar de ela não lhe ser estranha: “Era mais ou menos em cima de uma melodia que já existia”.

O que se passa é que o pai de Tatá “escutava muita música”, e muito variada, “desde música brasileira dos anos 50 brasileira a Noel Rosa”, aquela coisa “da canção bem feita”. Então as suas primeiras melodias “vinham desse lugar”. Com o tempo “chegou um momento em que comecei a tocar melodias mais autorais”.

Entre a urbe e o campo
Tatá é do interior de São Paulo, de uma zona entre a urbe e o campo. Passou a infância com “muito contacto com a natureza, alternando o interior e São Paulo”, e ainda hoje acredita que “estar bem dentro da natureza foi muito importante” para a sua formação. Anos mais tarde viajaria pelo Nordeste do Brasil adentro “e isso entrou na [sua] música”. Mas também, qualquer coisa pode entrar na sua música: “O meu cérebro está sempre a captar”, diz.

A “magia rolou” quando se tornou adulto, mais propriamente na altura em que finalmente resolveu aprender violão, aos 18 anos. Porque “antes tinha um amigo que tocava violão para as minhas músicas. Fazia as bases para as minhas melodias. Eu era um pouco preguiçoso”. Notem o paradoxo: normalmente os miúdos começam por tocar guitarra e depois tentam inventar melodias. Tatá andou 12 anos a criá-las antes de tocar nas seis cordas.

De imediato montou a sua banda, que acabou por transformar-se nos Cérebro Eletrônico, com os quais gravou quatro discos e alcançou bastante sucesso no seu país natal. Ali, havia espaço para tudo: “A gente, basicamente, experimentava bastante em cima das composições que eu fazia. Inspirávamo-nos em bandas muito diversas, como Os Mutantes, mas também música estrangeira, os Pizzicato 5, os Stereolab”, conta, e valha a verdade ainda se nota a influência dos Stereolab em Na Loucura e Na Lucidez. “A gente sempre botou todas as referências nesse caldeirão. Eu chegava, a gente sentava e botava no caldeirão”. Claro que podemos sempre argumentar que nem seria preciso pôr no caldeirão – Tatá parece ter caído nele quando era pequenino.

E um dia do Cérebro nasceu o Jumbo. Traduzindo: “A gente resolveu fazer uma segunda banda, o Jumbo Eletrônico – eram os mesmos integrantes do Cérebro, só que eu cantava em outra língua”. Estão a pensar que era em inglês, não estão? Apostamos que estão a pensar no inglês. Nótxi quáitxi: “Eu cantava num idioma que não existe. Chamo-lhe imbromation. Canto como se estivesse cantando inglês, mas um inglês meio aportuguesado, como um brasileiro ou um português tentando falar inglês sem saber uma palavra. É um jeito meio doido de criar”.

Durante durante 10 anos Tatá trabalhou na Universidade de São Francisco, que ficava num bairro antigo de São Paulo. Trabalhava no Núcleo de Cultura e Cidadania, “era um trabalho muito bacano, que durava só meio período e no resto do tempo dedicava[-se] à música”. Depois, o êxito do Cérebro obrigou-o a dedicar-se em exclusivo à carreira musical.

Mas esse período foi importante porque “na universidade [ele viajou] muito pelo nordeste brasileiro”. Tatá sempre escutou “tudo o que pintava”, mas “nessas viagens comecei a tomar contacto com uma série de compositores muito diversos”. Até hoje ele escuta de tudo, “com a super paixão de um garoto”, mas, se quiserem ter uma noção de como essas viagens o marcaram, basta mencionar que para Na loucura e Na Lucidez Tatá chamou, para tocarem no disco, “dois cearenses, do nordeste, que fazem parte de bandas psicadélicas do interior do Brasil. Esse disco tem um pouco dessas viagens pelo interior – mas também tem uma parte urbana”.

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Tendo em conta que Tatá vai nos 38 anos, ainda foi bastante o tempo que ele andou com duas bandas às costas, até que um dia sentiu “necessidade de compor as últimas safras de canções sem mais ninguém”.

Por últimas safras ele refere-se aos dois discos a solo – que, Tatá sendo Tatá, não são bem a solo. “Na verdade nunca deixei de estar em ambiente de banda: eu tenho uma banda que me acompanha – não é só que me acompanha, nós somos uma banda”. Aliás, no disco inteiro Tatá divide “as autorias [das composições] com os músicos”. Aqui está uma coisa original: Tatá deixa as bandas que criavam arranjos para as suas composições para fazer discos a solo em que compõe com uma banda.

“Antes a banda tinha muita intervenção. Agora, a gente inventa os arranjos dentro de estúdio, com o sentimento que cada um traz no momento. São discos feitos em três ou quatro dias, tudo muito intuitivo. Eu tenho umas canções, a gente se junta, e cada um responde de imediato – e está feito. É um processo que estou a gostar muito e vou continuar a usar: pegar nas canções e atirar para o cosmos. O que sair saiu”.

O que sair saiu. A maior parte dos músicos é capaz de tudo para garantir que tem uma visão, um objectivo e Tatá sai-se com esta: “A minha preocupação não é mais estética, eu não quero saber. Eu faço coisas de que não tenho muita ideia. Deixo-me levar”. Antes de mais, palminhas para a construção sintáctica de “Eu falo coisas de que não tenho muita ideia”. Depois note-se a conclusão a que ele chega: “Eu próprio não entendo o processo”.

Para Tatá o que importa é outra coisa, mais metafísica – ou física, mesmo. “Este disco é o começo de um resgate das minhas andanças pelo interior. O meu cérebro foi buscar o Zé Ramalho, o Lula Cortez, essa gente”.

Uma boa parte do tempo de Tatá é passado a andar. No seu blog, em tataaeroplano.com, há entradas sobre Psicadelia plena & Conexão Cósmica em que se pode ler: Ando pela cidade atualmente como se fazia no passado. Distâncias longas: 10km, 15km, 20km diários. (…) Nessas caminhadas intercalo música nos ouvidos, água na moringa e o simples sons dos passos. Pura Psicodelia. Psicanálise natural. Uma hora caminhando. Endorfina liberada. Festas, epifanias (...)”.

É que Tatá tem uma teoria: “Há 100 anos não havia meios de locomoção”, então, “e se você fizer uma caminhada longa acaba por ver coisas que hoje nem repara: pessoas, árvores, pássaros”. E isso transporta – diz Tatá, o ÍPSILON não está em condições de garantir – o indivíduo para outra dimensão de entendimento das coisas.

Seja o que isso for, permite fazer discos como Na Loucura e Na Lucidez, que “não é coisa de canção pop mas [ele] tinha consciência disso”. Tatá, aliás, diz que nem sequer compõe: “Eu recebo a canção. Quando termino umas têm 7 minutos outras 3. Às vezes há refrão, mas se não tiver não tem problema não”.

Em 2016, Tatá lançará um álbum com a sua amiga Bárbara Eugênia. No início de Março de 2015 estava à conversa com um jornalista português e mandou-lhe um mail com um link para um disco, em que se lia: “A Andreia Dias lançou [Pelos Trópicos] em 2013. Ela viajou o Brasil e cada música foi produzida e gravada em um estado diferente com uma banda diferente. Um dos meus discos preferidos dos últimos tempos”. Belo disco, já agora.

Quem mais aproveita uma entrevista de promoção do seu trabalho para falar de outros? É que Tatá tem um sonho: “Que essa coisa linda da internet una finalmente os portugueses e os brasileiros e a gente possa conhecer tudo”. Vamo entrá no caldeirão de Tatá?

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