Retrato do artista como angry young man

Um safanão na claustrofobia da disciplina e das fardas e botões do império britânico: Pela Rainha é o segundo filme de um díptico biográfico de John Boorman. Cineasta de 82 anos que faz corpo com os angry young men do filme. A conversa começa pelo fim.

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John Boorman na água, elemento decisivo nos seus filmes – “é uma metáfora maravilhosa do fluxo do tempo” Pierre Merimee/Corbis

Em Me and My Dad (2012), documentário de Katrine Boorman sobre o pai, o britânico John Boorman, este conta(-lhe) que se casara com uma alemã (a costume designer Christel Kruse, mãe de Katrine) para escapar à claustrofobia do sistema de classes britânico.

É uma private joke, e esse retrato que a filha tenta fazer do seu pai ("tenta" porque Boorman nunca hesita em dizer-lhe onde é que a câmara tem de estar por causa da luz...) conta mesmo histórias de família.

Pela Rainha, o último – o mais recente; provavelmente o derradeiro – filme do cineasta de 82 anos conta novos pedaços de uma autobiografia. São mais histórias de família. É outro safanão na claustrofobia imposta pela disciplina, pela limpeza e perfeição das fardas e botões militares; por uma obsessão com um relógio que fora oferecido a um regimento pela Rainha Vitória. É dado como desaparecido. E é a guerra na ilha – coisa doméstica.

Passaram oito anos desde os acontecimentos de Esperança e Glória/Hope and Glory (1987), quando os miúdos dançaram nas ruas de Londres debaixo das luzes dos bombardeamentos do Blitz (Boorman tinha nove anos). Agora os soldados enfrentam tribunal militar por causa do relógio da Rainha Vitória.

Está a cumprir serviço militar o alter-ego de Boorman, Bill – que continua a ter como refúgio, como se vira no final de Esperança e Glória, a casa familiar, uma ilha no Tamisa, mesmo ao lado dos estúdios de Shepperton, mesmo ao lado do cinema. A Guerra da Coreia é lá longe, "em casa" o ar está irrespirável. O império chegara ao fim, muitos não o sabiam e outros esbracejavam com insolência, cúmplices mais ou menos inconscientes desse desespero e no golpe final. Estavam a chegar os anos 60.

Pela Rainha é a segunda parte de um díptico biográfico. Repare-se como os títulos originais dos dois filmes se contrapõem e dizem exactamente ao que vêm: a possibilidade de maravilhoso estava acessível durante a Segunda Guerra, que era em si mesmo um cinema a céu aberto (Hope and Glory); o dever, a disciplina (Queen and Country) passaram a ser as cores sombrias de um mundo fechado, provinciano, onde só a espaços se respirava com os filmes que chegam às salas escuras – para abrir hipóteses à realidade.

Boorman é cúmplice, com estes jovens zangados, desse golpe de misericórdia sobre os restos do império – Robert Altman parecia querer destruir o som e a imagem de M.A.S.H. (1970), Boorman, que também soube ser americano, é mais britânico na iconoclastia. Se é verdade que se respira neste filme aquilo que mais se enfatiza em relação ao final dos cineastas "velhos" (já se falou, a propósito, dos últimos Ford ou Houston), isto é, a serenidade com que se maribam no tempo, como dele se suspendem quando chegam ao fim do seu cinema (o último plano diz, de forma límpida: "Acabou!"), há em Pela Rainha uma vontade de inscrição numa história, pública e pessoal, de mostrar de onde se veio e anunciar o que estava para vir. Nostalgia, sim, mas metendo-se ao barulho na guerrilha com o tempo. Boorman, 82 anos, ex-jornalista e documentarista televisivo que no início da carreira aterrou na Nova Hollywood e na América, encontrou vigorosos retratos de violência (os anos 70 não seriam os anos 70 sem ele, sem Inferno no Pacífico, À Queima-Roupa ou Deliverance), faz corpo com estes angry young men.
Esta conversa começa pelo fim.

Para começar, o último plano de Pela Rainha/Queen and Country: a câmara de filmar que pára, forma de dizer que a sua também ia parar: “Acabou!” Depois disso já disse que, afinal, pode haver mais um filme. Mas queria regressar a esse momento em que um realizador sente que quer terminar a sua carreira, ao momento em que filmou aquele plano...
A minha intenção era mesmo que fosse o meu último filme, por isso no plano final a câmara pára. Uma forma de dizer às pessoas que acabou – e, se calhar, apesar de estar a ser encorajado a fazer outro filme, acho que provavelmente será... Tenho 82 anos, fazer um filme é muito difícil e cansativo, não tenho a certeza que tenha a energia e a vitalidade de o fazer.

Pela Rainha é um filme de um jovem irado, não de alguém cansado...
[Risos] Bem, é um filme sobre um jovem, e tentei expressar ideias através dos olhos de um tipo de 18 anos, o que contempla sempre ira. Mas acho que é o que se pode chamar "um filme com nostalgia pela juventude", talvez.

Falaremos desses sentimentos daqui a pouco, da juventude e da ira. Para já continuemos pelo cinema: Casablanca (1942), The Outlaw/A Terra dos Homens Perdidos (1943), Rashomon/Às Portas do Inferno (1950), O Desconhecido do Norte Expresso (1951) e Sunset Boulevard (1950) são filmes que as personagens evocam, filmes que os marcaram. Correspondem a uma viagem cinéfila pessoal?
São os filmes que se estrearam na Grã-Bretanha na altura em que eu estava no Exército. São os filmes de que as personagens poderiam falar. Não são particularmente os meus eleitos, são os que estavam nas salas.

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Pela Rainha (2014), que chega às salas, é a segunda parte de um díptico biográfico. Tudo começou com Esperança e Glória (1987) DR

Um deles, no entanto, motiva uma elaborada conversa entre as personagens, Rashomon...
Lembro-me de ter ficado espantado pela técnica e pelas emoções. Naquela altura, antes de entrar no Exéricto, tinha 17 ou 18 anos, o National Film Theatre abriu na South Bank em Londres e começou a mostrar uma série de filmes mudos, Griffith, Greed [Erich von Stroheim, 1924], o Napoleão [1927] do [Abel] Gance, e assim eu fazia uma enorme descoberta sobre os inícios do cinema. Estava muito consciente do cinema e de como se tinha desenvolvido. Quando vi Rashomon, isso marcou-me muito, provavelmente eu era mais cinéfilo do que os rapazes da minha idade.

Na primeira parte do díptico, Esperança e Glória/Hope and Glory (1987), há aquela sequência de um Zeppelin nos céus de Londres. Lembrei-me do Amarcord do Fellini...
Certo.

Não lhe pergunto se é felliniano nesta viagem à sua memória, que agora se completa com Pela Rainha, mas queria saber que lugar tem a fantasia nestes pedaços de autobiografia.
A relação entre a memória e a imaginação é muito misteriosa. Quando destacamos uma parte do nosso passado, estamos já a aplicar imaginação, Comecei, em Esperança e Glória, por escrever as memórias mais importantes que tinha de criança durante a guerra. Dramatizei até certo ponto, mas todos os incidentes vieram directamente da minha experiência. Isso também é verdade para as personagens de Pela Rainha, foram pessoas que conheci. E aquele incidente, o roubo do relógio, também aconteceu. Só que na verdade esse rapaz roubou várias outras coisas que vendeu, mas concentrei-me apenas no relógio.
Fiz ajustamentos, mas os dois filmes têm uma base firme em acontecimentos e pessoas, inclusive pessoas da minha família.

Mesmo o episódio o Zeppelin...
Sim, isso aconteceu, e dessa forma: ficou à solta e começou a ir de encontro aos telhados das casas. Foi um dos momentos mais memoráveis da guerra [risos].

Esperança e Glória, passando-se durante os bombardeamentos sobre Londres, na Segunda Guerra, é um filme mais feliz e acolhedor do que Pela Rainha, que se passa em tempo de paz – é um filme mais zangado.
É verdade.

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Pela Rainha: a Inglaterra a escapar à sua masculinidade, que estava ligada a uma ideia de Império que terminara, e a encontrar a sua feminilidade DR
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Diria assim: em Pela Rainha as personagens precisam de falar muito em cinema, em filmes, porque precisam dessa dimensão de escapismo; em Esperança e Glória não precisam de o fazer, porque há já um grande filme nas suas vidas, a guerra – um bombardeamento é, para as crianças, fogo-de-artifício, possibilidade de maravilhoso.
E foi-o, pelo menos durante algum tempo, até porque as crianças não tinham a consciência dos horrores que se passavam no mundo. O filme é o ponto de vista de uma criança de oito anos.

Mesmo nos títulos originais dos dois filmes há esse contraponto: Hope and Glory contém emoção, generosidade: Queen and Country está preso ao dever, é frio. Num documentário realizado pela sua filha, Me and My Dad, às tantas você brinca e diz que se casou com uma senhora alemã para escapar à claustrofobia do sistema de classes britânicos. A brincar, a brincar, Pela Rainha é um filme sobre essa claustrofobia, não é?
Sim.

Lembra o M.A.S.H. de Altman...
Percebo. Mas pensei antes no Bom Soldado Schweik [de Jaroslav Hašek, começado a ser publicado em fascículos em 1921]. Na natureza ridícula da vida militar, em que se impõem regras aos soldados, ilógicas e inumanas. O treino militar é feito para ensinar os soldados a obedecerem a regras.

Na insolência destas personagens está uma energia que iria irromper anos depois – por exemplo, um filme chamado If/Se, (1968), de Lindsay Anderson, produto e sinal de uma Inglaterra que estava a nascer, é aqui de certa forma "explicado". O seu filme fala de uma Inglaterra que acaba, mas outra está a nascer.
Sim, é um filme sobre as mudanças que estavam a acontecer. No pós-guerra os soldados mais velhos agarravam-se com unhas e dentes a uma noção de império, e nós, a nova geração, sabíamos que tudo isso já tinha acabado. O império britânico tinha desaparecido em meia dúzia de anos. Desse grande império ficou uma ilha pequena na costa europeia. E coisas significativas começaram a acontecer.
Diz-se que os britânicos colonizaram uma série de territórios estrangeiros, mas eu diria que a própria Inglaterra foi uma vítima do império. Todo o sistema foi concebido para produzir jovens que fossem espalhados pelo império e para governar em nome do império – ou seja, a Inglaterra foi ocupada pelo império. Daí, a enorme sensação de liberdade [perante o desaparecimento do império]. O Governo trabalhista que veio a seguir à guerra montou um sistema de escolas modernas em que se ensinava às crianças alguma coisa de música e de arte, o que não existia antes. Se virmos bem, as crianças que foram à escola nesses anos tornaram-se os Beatles e os Rolling Stones nos anos 60. A origem disso ocorreu nos anos 50.

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Mencionou a palavra ilha. É algo que tem um papel decisivo em muitos dos seus filmes – ilha e água. Desde logo neste díptico, já que a personagem principal vive mesmo numa ilha no Tamisa. Hell in the Pacific [1968] passa-se numa ilha, com duas personagens, um japonês [Toshiro Mifune] e um americano [Lee Marvin]; em Deliverance [1972] tudo acontece por causa da descida de um rio; mesmo À Queima-Roupa [1967]: fica sempre com o espectador Alcatraz, a baía de São Francisco, a água – que é tanto uma fonte de ameaça como um refúgio protector...
Como sabe, como se vê na segunda parte de Esperança e Glória e em todo o Pela Rainha, fui criado no Tamisa e sempre tive uma grande sinergia com a água. Aos 12 anos quase me afoguei no rio e por incrível que possa parecer foi uma experiência pacífica. Sempre senti a compulsão para mergulhar em qualquer corpo de água que encontre. Para além dessa afinidade pessoal, acho que a água, um rio, é um símbolo maravilhoso da própria vida. Sabemos pouco sobre a água, é misteriosa. Não sabemos, por exemplo, porque é que, quando está frio, em vez de se contrair ela se expande e se transforma em gelo. É a própria substância da vida, é o coração da existência. É uma metáfora maravilhosa do fluxo do tempo.

E a ilha: algo de físico, ligado como disse à sua vida, mas também um lugar onde alguns homens dos seus filmes, dos seus filmes americanos, estão prisioneiros. Da sua violência: Lee Marvin em À Queima-Roupa, Toshiro Mifune e Lee Marvin em Hell in the Pacific. Em Esperança e Glória e em Pela Rainha a ilha não é um estado de espírito violento, é um lugar protector, de felicidade.
Em Deliverance, a primeira parte, quando os homens estão nas suas canoas, estão felizes a conduzir entre os rápidos. Mais tarde, claro, a violência da água torna-se destruidora. Na natureza temos a beleza e a maldade, e é assim que vejo a água,

Há uma diferença entre os seus filmes americanos e os seus filmes ingleses: nos primeiros há uma performance da masculinidade, e isso concretiza-se na escolha de um tipo de actores sem equivalente nos seus homens ingleses: Burt Reynolds, John Voight, Le Marvin... Essa masculinidade vai ser abalada, violada. Porquê esse fascínio, foi a América que o fez ir atrás desses corpos e da violência que eles contêm?
Vi a América como um país muito masculino, fundado no conceito de masculinidade e violência. E sempre senti que a Inglaterra estava a tentar escapar à sua masculinidade, que estava ligada ao império, e a encontrar a sua feminilidade. Um dos temas de Pela Rainha é esse: a namorada, a mãe... são elas que fornecem a possibilidade de sabedoria ao rapaz. É um movimento do masculino para o feminino.

Há um movimento também nesses filmes masculinos: no final de À Queima-Roupa Lee Marvin retira-se...
... desaparece [he fades out]

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Lee Marvin em À Queima Roupa (1967) DR
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Deliverance (1972) DR
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Hell in the Pacific (1968) DR

Em Hell in the Pacific, os dois homens começam como personagens de uma alegoria, mas ao longo do filme páram de simbolizar o que quer que seja e tornam-se eles próprios; no final de Deliverance todos ficam  diferentes. Isso leva-me à suas recentes declarações contra American Sniper, de Clint Eastowwod, contra a violência desse filme e da personagem principal. O que é que é diferente da violência das suas personagens?
Acho American Sniper muito ofensivo. A essência desse filme é, para mim, a celebração da arma e da habilidade de matar. Quando o vi´, achei de um tremendo mau gosto, desagradável, e mais ainda ver como foi abraçado pela audiência. Foi muito perturbador para mim. Eastwood faz um grande trabalho como realizador, mas não sei...

Concordo, e o que é mais desagradável é que há uma recusa de complexificar, de problematizar, que é irresponsável, tudo para chegar ao mercado...
Isso.

Vamos então aos seus filmes americanos: um britânico chega à América e faz um thriller que hoje seria considerado experimental, pela forma como trabalha o som e a imagem – À Queima-Roupa –, e um filme com duas personagens numa ilha, quase sem diálogo – Hell in the Pacific. Hoje seriam filmes impossíveis, na altura eram o mainstream
Tive muita sorte. Quando conheci Lee Marvin em Londres, ele estava a filmar Os Doze Indomáveis Patifes [Robert Aldrich, 1967], deram-me o argumento [de À Queima- Roupa] e era muito mau. Mas a personagem era fascinante. E comecei a perceber que Lee tinha lutado no Pacífico, aos 17, 18 anos, tinha sido um sniper, tinha sido brutalizado pela guerra e representar era para ele uma forma de recuperar a sua humanidade. Quando percebi isso, através das nossas conversas, gradualmente a história do filme tornou-se a história de Lee Marvin, a história de um homem “que regressa”: ele regressa para recuperar o seu dinheiro, mas na verdade regressa para recuperar a sua alma. Foi isso o que deu imenso poder ao filme. Tinha passado muito tempo a fazer documentários sobre pessoas, a descorbrir o que eram as pessoas. À Queima-Roupa foi, de certa forma, uma metáfora para a viagem de Lee Marvin de regresso à vida. Ele apoiou-me. Fui a Los Angeles, ele telefonou aos estúdios, tinha um contrato que lhe dava o direito de aprovar o realizador e o cast, e impôs-me. Fazer este filme em Hollywood teria sido muito difícil, se não tivesse este apoio, este poder a apoiar-me.

Não foi só sorte, porque fez também um filme com apenas dois tipos numa ilha... O que estava à volta, naquele tempo, era diferente. A revista que editou, com textos e trocas de ideias de cineastas – a publicação Projections: Film-makers on Film-making – que falam das suas aventuras e dificuldades, é um retrato de um estado das coisas, ainda actual. Indisfarçável a admiração pelo passado, os anos 70. Qual é para si a principal diferença entre os anos 70 e hoje? O que é que aconteceu?
Aconteceu Star Wars. O sucesso fez os estúdios perceberem que a audiência eram rapazes de 14 anos. Todos os blockbusters subsequentes se dirigiram a essa categoria de espectadores, rapazes à procura de aventuras. O público para histórias mais complexas era, comparativamente, pequeno. O que se passa hoje é o mainstream ser feito de blockbusters e cá em baixo estar o gueto do “cinema de arte”. É onde trabalho agora, com muito pouco dinheiro. Já não há cinema do meio. Há ainda algumas coisas, porque os estúdios querem meter coisas nos Óscares, mas a coisa decaiu.
Os anos 70 foram um período especial. Os estúdios não sabiam o que fazer, não sabiam como contrariar a televisão e pensaram que este grupo de jovens realizadores podia conseguir alguma coisa e deram-lhes, deram-nos, liberdade.

Para acabar com o último plano de Pela Rainha: é ou não o último? O que o impede de fazer um outro filme?
Tenho de encontrar dinheiro e já não posso trabalhar 18 horas por dia, seis dias por semana.
Tenho um argumento que escrevi há uns anos, baseado de forma livre na lenda de Orfeu. A história de uma mulher que morreu em circunstâncias misteriosas, o marido – estavam apaixonados loucamente um pelo outro – segue o corpo dela até à casa onde as pessoas vão quando morrem, dão-lhe um DVD de toda a vida em comum e ele tem três horas antes da coisa terminar. É sobre a morte e o cinema.

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