O que devem os pais contar na Net quando um filho tem cancro?

Pedidos de ajuda. Ou apenas diários a contar a luta dos filhos com cancro. Fotografias. Vídeos. Pormenores clínicos. A associação Acreditar está a promover uma reflexão sobre o papel da Internet. Será que quando crescerem as crianças vão gostar de ver o que sobre elas foi revelado?

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Na casa da Acreditar em Lisboa podem viver até 12 famílias, cujos filhos estão a receber tratamentos no IPO Miguel Manso

Primeiro foram as dores, depois um diagnóstico de cancro na cabeça, ainda ele não tinha quatro anos. Seguiu-se um período de tratamentos. As fotografias dele dessa altura mostram um menino pálido, magro, com olheiras, sem cabelo. Algumas mostram também as feridas provocadas pela radioterapia. Estão todas guardadas, essas fotografias, numa caixa. Outras, em formato digital, estão numa pastinha no computador da mãe. Ele é hoje um rapaz de 11 anos, que há muito superou a doença, que tem boas notas, muitos amigos. É um “rapaz giro” e tem, desde logo, uma imagem a preservar. Aquele menino das fotos, com cancro, já não é ele. Aquelas fotos não são para estar nos álbuns. Não gosta de vê-las.

Quando o filho adoeceu, Cláudia Marcos, professora no ensino superior, tirava fotografias dele, como todas as mães tiram fotografias aos filhos. Não o via assim, como o vê agora quando olha para aquelas imagens da caixa. “Agora olho e fico aterrorizada, mas na altura acho que não tinha noção.” Era o filho dela, não lhe parecia tão amarelo, nem tão olheirento.

Não se falava a toda a hora de redes sociais na Internet, como hoje. E Cláudia não tinha uma página de Facebook, como tem actualmente — é aliás bastante activa no Facebook. Assim, a questão de partilhar fotografias do filho, quando tudo o que estava a acontecer estava a acontecer, nunca se colocou. Seja como for, acha que não teria posto online aquelas fotos dele doente. Pelo menos é a convicção que tem hoje. Uma coisa é certa para ela: o seu “rapaz giro” detestaria que elas tivessem sido partilhadas.

Mas será que os pais pensam sempre no que os filhos acharão um dia, quando crescerem, sobre a história que sobre eles foi contada? Esta é uma das questões centrais no debate que a Acreditar — Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro está a promover sobre "as crianças com cancro e a Internet".

“Teremos de viver para sempre com aquilo que colocamos na Internet. Apesar de existirem definições de privacidade, o controlo sobre a informação é impossível: assim que publicamos, perdemos irremediavelmente mão sobre esse conteúdo. Esta constatação incontornável obriga-nos a pensar se, como pais/educadores, teremos o direito de escrever publicamente a tinta inapagável a história dos nossos filhos, a sua vida e as suas circunstâncias, os seus momentos de maior vulnerabilidade”, lê-se nas conclusões do primeiro encontro sobre o tema, que reuniu no mês passado pais, profissionais de saúde e educação e investigadores, no Instituto Português de Oncologia (IPO) de Lisboa. O debate foi organizado pela Acreditar.

A certa altura, uma participante pediu a palavra: “Eu sou a Madalena, tive um cancro quando tinha 10 anos. Há 30 que estou bem. Odiaria que alguma imagem minha, dessa altura, estivesse disponível na Internet.”

Um médico do IPO questionou: “Vivemos numa sociedade super-competitiva. Daqui a 20 anos que utilidade haverá, em termos de acesso ao trabalho, por exemplo, em saber-se que esta ou aquela criança teve cancro?”

Mas o tema é delicado. Em todo o mundo há cada vez mais blogues e páginas no Facebook onde os pais relatam, por vezes quase diariamente, o percurso dos filhos — estejam eles saudáveis ou doentes (por vezes muito doentes). Colocam fotos — nuns dias, os meninos chorosos, sem cabelo, a fazer tratamentos, deitados em camas de hospital; noutros dias sorridentes, no campo, a colher flores; ou na cozinha, de pijama, ao pequeno-almoço...

Apelos e esperança
Nuns casos, as famílias alimentam essas páginas e blogues porque precisam de donativos para custear um tratamento alternativo, caro, por vezes longe de casa, no qual depositam esperança — e é sabido como as redes sociais são uma boa forma de apelar à generosidade das pessoas. E como estas reagem a imagens comoventes. São as “páginas-apelo”.

Noutros casos, há tão só um desejo de partilhar com o mundo a luta da família. “Quando estão a partilhar o dia-a-dia dos seus filhos em processo de doença, recebem centenas, milhares de gostos, de comentários, de partilhas. As pessoas sentem-se apoiadas, acarinhadas, acompanhadas. Pode ser um colo falso, mas é um colo”, diz Cláudia Marcos, que também trabalha como voluntária na Acreditar.

Por vezes, partilhar a história na Internet é também uma forma de procurar outros pais que tendo passado pelo mesmo podem ter sugestões preciosas, uma cura, até — quem sabe? Às vezes, este desejo transforma-se num factor acrescido de stress. Uma das mães presentes no debate no IPO relatou como, a certa altura, era bombardeada com mensagens de pessoas a propor tratamentos alternativos para o seu filho doente, em diferentes pontos do planeta. “Sentia-me pressionada. Depois, expliquei que não tinha meios económicos para aquilo, para ir para o estrangeiro.” Esse stress de ser “bombardeado” com informação (e desinformação, como fez questão de notar a chefe do Serviço de Pediatria do IPO, Filomena Pereira) é o reverso da medalha de quem procura conforto nas redes sociais.

De resto, vários pais sublinharam a necessidade de instituições como o IPO ou a Direcção-Geral de Saúde criarem um espaço na Internet “onde se assinale quais os canais de informação que são seguros e quais os que não são comprovados”, porque é na Internet que a maioria das pessoas procura aceder a informações sobre a doença oncológica e os seus tratamentos. Mas essa é outra questão.

O debate que a Acreditar quer promover é, essencialmente, sobre a criança e os seus direitos. Os direitos de todas as crianças e, em especial, das que têm cancro, porque são essas o centro das atenções do trabalho da associação. Não há respostas fechadas. “As crianças com cancro estão a ser cada vez mais expostas na televisão, nas redes sociais. E o que por vezes nos chama a atenção não é tanto o que é exposto, não é o ‘Ó, foram longe demais nas fotografias que mostraram!’ Não é isso. É: ‘Será que tiveram noção de que expuseram? Que houve uma reflexão? Ou fizeram só porque outros fazem, porque é moderno? Será que isto foi conversado com os filhos, que os filhos aceitaram, que foi uma decisão conjunta?”, diz Patrícia Pinto, coordenadora do projecto Arco Iris (um programa de cuidados paliativos pediátricos em contexto domiciliário) na Acreditar. Encontramo-nos com ela numa manhã de sol na casa da associação, junto ao IPO de Lisboa, que tem capacidade para receber 12 famílias de fora de Lisboa, cujas crianças estejam em tratamentos na capital.

“O que se trata aqui é uma vontade de nós, associação, com os pais, pensarmos juntos” na relação que temos com a Internet, diz Patrícia Pinto. “Porque, por vezes, pode não ser tão inócuo assim. Não é dizer que tudo é mau, porque não é.”

A "princesa Nonô"
Vanessa Afonso, mãe de Leonor, uma criança que passou a ser uma das caras mais emblemáticas na luta contra o cancro, sabe bem a força das redes sociais — e, no seu caso, o balanço que faz é muito positivo. A página no Facebook chamada “Os aprendizes da Nonô” foi criada em Junho de 2013, depois de ser diagnosticado a Leonor, de 4 anos, um Tumor de Willms bi-lateral.

“Começou por ser uma forma de partilhar com as pessoas amigas o que se estava a passar”, conta Vanessa Afonso, a mãe da menina que ficou conhecida como “a princesa cor-de-rosa” e que morreu em Setembro de 2014. “Eu era bombardeada com chamadas e mensagens, das pessoas mais próximas, que amavam a Leonor e queriam saber como estavam a correr as coisas com ela... para não ter de responder de volta a todas, criei uma página onde punha a família e os amigos a par do que ia acontecendo. Eram umas 50 pessoas, não tinha de repetir 50 vezes.”

Quando percebeu que para avançar com o tratamento que desejava para a filha, na Alemanha, precisaria de, pelo menos, 50 mil euros, a página foi partilhada por mais pessoas, continua. Os familiares partilharam com amigos. Os amigos, com outros amigos. Para quem quisesse ajudar, estava lá um NIB. Esses, e quem estivesse apenas interessado em seguir a luta da “princesa Leonor” contra o cancro, tinham à sua disposição inúmeros posts.

Vanessa Afonso ia mostrando e contando, em fotos e vídeos, a história da doença da filha — os tratamentos no IPO, a perda de cabelo, Leonor a cantar na sala lá de casa, Leonor a dançar, Leonor a agradecer “aos amiguinhos do Facebook”, Leonor a correr e a brincar na praia, feliz.

A página passou de 50 para quase 190 mil seguidores, diz Vanessa Afonso, que acabou por criar uma associação de apoio a famílias de outras crianças com cancro.

“Não apelava às pessoas que tivessem pena da minha filha, mas precisava de ajuda, por isso criei uma espécie de história de encantar: Leonor, a princesa, a magia cor-de-rosa... e isso contagiou as pessoas. A moral da história era esta: é possível ser feliz na tormenta, era o que queríamos dizer”, conta Vanessa Afonso. “E a Leonor adorava, era muito comunicativa, falava com os amiguinhos do Facebook.”

Nesse espírito, diz que não partilhava fotografias ou vídeos em que a filha parecesse mais vulnerável. Só uma vez publicou uma imagem que o resto da família criticou: Leonor depois de uma cirurgia, no hospital, ligada a vários fios. “Mas estava com um sorriso e o objectivo era mostrar a outros pais que estivessem a passar pelo mesmo: ‘Já passou, correu bem e ela está com um sorriso...’ De resto, para mim, expor a debilidade das crianças é errado.”

Mas o que é expor demasiado? E no caso das páginas-apelo, se o que está em causa é pedir ajuda para um tratamento, por exemplo, quais são os limites?

Patrícia Pinto diz que não é capaz de dar respostas definitivas. “O que é que nós não faríamos para salvar as vidas dos nossos filhos? Às vezes atravessamos fronteiras que, de fora, acharíamos que não iríamos nunca atravessar”, admite. “Mas mesmo tornando, por necessidade, pública — e vastamente pública — a situação de doença das crianças, também há maneiras de o fazer e é esse equilíbrio que nós, como associação, gostaríamos de, em conjunto com as famílias, encontrar, sensibilizando para isto.”

Gosto, não gosto
Lídia Marôpo é professora do Instituto Politécnico de Setúbal e investigadora do Cesnova — Universidade Nova de Lisboa. Foi uma das convidadas da Acreditar para o debate no IPO. Explicou que hoje as crianças e os adolescentes estão nas redes sociais, têm as suas páginas no Facebook, a Internet faz parte natural e incontornável do seu mundo e da construção da sua identidade. A grande preocupação delas e deles é, mais do que as questões segurança, esta questão: “Como é que eu sou visto pelos meus amigos e pelos meus colegas?”

As crianças com cancro não são diferentes. “Dizem que não querem representações de crianças como vítimas, que não querem exibição de detalhes dolorosos sobre o seu tratamento. Querem oportunidades para serem um bom exemplo de coragem, não se importam de aparecer depois de ultrapassado o pior. Valorizam o outro lado da vida dos jovens com cancro — os sonhos, actividades e planos para o futuro. Querem ser representados na sua espontaneidade e alegria, realçando sobretudo a força que têm dentro. Querem que seja imprescindível o seu consentimento”, contou a professora com base nas conclusões de uma investigação que co-orientou na Universidade Federal do Ceará (A percepção de adolescentes com câncer sobre suas representações na cobertura jornalística, trabalho de conclusão da graduação em Comunicação Social de Raiana Soraia de Carvalho).

Patrícia Pinto vê estas ideias verbalizadas por muitas das crianças com as quais lida. De resto, a associação nunca usou imagens de crianças para se promover. “Foi uma visão da fundadora [Ana Corrêa Nunes] que desde o início lhe pareceu claríssimo que não era para expor.”

Era uma vez um rapaz
Recentemente, numa das consultas de controlo no IPO, o filho de Cláudia Matos foi abordado pela médica dele. Gostaria de dar uma entrevista? “Ele ficou muito contente”, conta. “Porque tem um bocadinho de vaidade, é um rapaz giro. Mas também por poder falar do que se tinha passado com ele. Aliás, acho que mais do que falar do que tinha passado, por poder dizer como é que está agora. Acho que isso foi a parte de que ele mais gostou. De dizer que está bem, que tem muitos amigos, que tem uma vida normal.”

O filho deu então a entrevista, com um discurso “crescido”, que não o confrangerá daqui a uns anos, sublinha Cláudia. Foi para se certificar de que assim era que quis acompanhar a conversa dele com a jornalista. “Se ele ainda estivesse doente, eu não teria concordado.”

Concorda com aquela parte do debate a que assistiu no IPO, em que Lídia Marôpo falava da importância de explicar desde cedo às crianças (que por vezes se sentem pressionadas a partilhar detalhes privados nas suas páginas porque é isso que mantém o interesse que os amigos têm nelas) que um dia terão de lidar com o que tornaram público.

Mas há outras histórias de exposição pública com um desfecho diferente. Patrícia Pinto conta uma: um adolescente chegou ao fim dos tratamentos no IPO; iria regressar à sua terra finalmente, uma terra pequena onde todos se conhecem; na véspera de regressar, um jornal local publicou a história da doença dele. Alguém passara a informação sobre aquele caso de luta contra o cancro, seguramente com boas intenções. Mas o rapaz ficou devastado. Durante algum tempo recusou voltar para casa.

O seu “direito de querer esquecer” e “de ser esquecido”, de que tanto se falou no encontro no IPO (“de não ficarem para sempre publicamente registados aspectos do seu passado”) não foi respeitado. Não prevaleceu “a ideia do superior interesse da criança” nem o direito que a criança tem de “dar consentimento informado” da divulgação da sua história. Não houve “bom senso”. Tudo o que, afinal, segundo os vários intervenientes no debate do IPO, deve existir quando se fala de crianças e Internet. “Os filhos dizem-nos que a sua história é deles, não dos pais.”

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