O significado e o alcance do novo Código do Procedimento Administrativo

O Código do Procedimento Administrativo (CPA) que amanhã entra em vigor revê o Código de 1991.

A revisão teve que ser profunda para que o novo CPA passasse a responder às exigências que hoje se lhe colocam. Um CPA traz benefícios tanto para a Administração Pública (AP), porque lhe permite formar bem a sua vontade na prossecução do interesse público, como para os particulares, que, para além de ficarem a saber em que termos se devem processar as suas relações com o Poder administrativo, têm a garantia de que este, ao satisfazer o interesse público, pondera devidamente os seus direitos, como é imposto pelo art. 266.º, n.º1, da Constituição (CRP).

Em grande síntese, pode-se dizer que o novo Código pretende que a nossa AP passe a estar ao serviço das novas exigências de um moderno e progressivo Estado Social de Direito, como é aquele que resulta da nossa CRP e do Tratado da União Europeia, ao qual Portugal se encontra vinculado (art. 3.º, n.º 3, par. 1). Ou seja, ele pretende tornar a nossa AP mais eficiente, económica e célere (daí a imposição da “boa administração”), mais democrática, mais transparente, mais isenta e imparcial, mais séria e mais simplificada.

As inovações do novo Código, que são muitas, constam do preâmbulo do próprio Código e da respectiva Lei de autorização legislativa (Lei n.º 42/2014, de 11 de Julho). Vamos destacar aqui apenas as que são mais importantes. O Código passa a aplicar-se a toda a actividade administrativa mesmo doutros Poderes do Estado e de entidades privadas. Ele passa a ser muito mais exigente quanto aos princípios que vão passar agora a reger toda essa actividade. Como novos princípios, ou princípios com conteúdo novo, destacam-se os princípios da boa administração, já referido, da razoabilidade, da justiça, da proporcionalidade nos sacrifícios impostos aos direitos dos particulares em nome do interesse público, do carácter tendencialmente gratuito do procedimento administrativo, da responsabilidade da AP pelos prejuízos que causa aos particulares, da proteção dos dados pessoais, da cooperação reciprocamente leal com a União Europeia e com outros Estados membros da União.

A AP passa a ter de se relacionar entre si por meios electrónicos, embora os particulares possam lidar com a AP por correio postal se assim preferirem. Deixa-se claro que o procedimento administrativo tem de correr na língua portuguesa. Simplifica-se muito a actividade dos órgãos e serviços da AP ao mesmo tempo que se a torna mais célere e mais eficiente e se melhora a sua qualidade através dos instrumentos da cooperação e boa-fé entre a AP e os particulares, da adequação procedimental, do auxílio administrativo, dos acordos endoprocedimentais e das conferências procedimentais. Só para se dar um exemplo, uma conferência procedimental, ao fazer com que  várias entidades que têm competência comum ou conjunta para decidir uma dada matéria, se reúnam e decidam essa matéria em conjunto e em simultâneo, leva à poupança de muito tempo no procedimento administrativo, ao mesmo que melhora a qualidade e o resultado da decisão.

Reforçam-se as garantias de imparcialidade no funcionamento da AP. Consegue-se, pela primeira vez na História do Direito Administrativo em Portugal, que haja um prazo geral para a Administração decidir um procedimento de iniciativa particular, aliás um prazo que é generoso: 90 dias, prorrogável, por motivos fundamentados, por um ou mais períodos, até ao máximo de 90 dias. Além disso, os procedimentos de iniciativa da AP, que possam conduzir a uma decisão desfavorável para os interessados, caducam no prazo de 180 dias se entretanto não tiver havido decisão. E fica dito de modo expresso que o incumprimento do dever de decidir, e dentro do prazo, passa a constituir a AP e os seus servidores em responsabilidade.

Quanto aos regulamentos administrativos, fica definido pela primeira vez o seu regime substantivo. Dentro deste merece destaque, por exemplo, que cada regulamento tem de ser acompanhado da sua avaliação económica, isto é, da relação custo-benefício. É uma exigência que muitos Estados ricos já têm há muito tempo e não fazia sentido que não a tivesse um País, como o nosso, que agora se prova que é pobre e não tem dinheiro para extravagâncias.

No acto administrativo, destacam-se duas das talvez maiores inovações de todo o Código. Primeiro, a invalidade do acto. Actos nulos passam a ser apenas aqueles que o Legislador comine com essa sanção. Depois, a distinção entre revogação e anulação administrativa do acto. Altera-se substancialmente o regime dos actos constitutivos de direitos. Eles passam a poder ser revogados, mediante reparação, em caso de boa-fé, com fundamento na superveniência de conhecimentos técnicos ou científicos ou em alteração objectiva das circunstâncias de facto, em face das quais, num ou noutro caso, eles não poderiam ter sido praticados, designadamente tratando-se de actos que, à sombra do art.º 18.º, n.º 3, CRP, eliminem ou afectem o conteúdo essencial ou a substância de um direito patrimonial ainda que não tenham o efeito ablativo desse direito. Por sua vez, passa a haver vários prazos para a anulação administrativa desses actos, em função de diferentes situações de Direito. Dentro dessas situações destacam-se a de actos que criaram direitos com recurso à fraude; ajudas do Estado concedidas com infracção do Direito da União Europeia; actos que ainda podem ser revogados em face do respectivo Direito nacional a fim de se harmonizarem, em certas circunstâncias, com  Direito da União Europeia que lhes seja posterior. 

Em matéria de impugnações administrativas, não proveio da Comissão de revisão a proibição, salvo expressa disposição da lei, do recurso para o delegante do acto do delegado, o que não tem tradição no nosso sistema jurídico e que vai afectar a confiança entre delegante e delegado, por exemplo, entre ministros e secretários de Estado. Aliás, outra inovação de última hora no processo legislativo e cuja paternidade se desconhece foi a da exigência de que os regulamentos, para serem eficazes, devem ser, todos eles, independentemente das entidades das quais provenham, publicados em Diário da República. Não há qualquer razão para serem publicados no DR, por exemplo, regulamentos de autarquias locais. Foi deixado para diploma posterior, a aprovar dentro de 60 dias, a regulamentação da execução coerciva de actos administrativos assim como a aprovação, dentro de um ano, por Resolução do Conselho de Ministros, de um “Guia de boas práticas administrativas”, que a experiência de outros Estados prova que melhora a qualidade da actuação da AP e reforça a colaboração entre ela e os particulares na prossecução do interesse público.


Portugal é conhecido por cumprir pouco e mal as leis em vigor. Espera-se agora que o novo CPA seja cumprido pela AP e pelos particulares, cabendo à AP dar aí o exemplo. Para que o País seja respeitado nos planos interno e externo é necessário também que ele preserve um dos pilares da Democracia, o primado do Direito. A não ser assim, é toda a crença no regime democrático do País que fica seriamente abalada.

Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

Presidente da Comissão encarregada da revisão do Código do Procedimento Administrativo, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e do Código de Processo nos Tribunais Administrativos 

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