Charlies, por quem sois afinal?

A frase de James Bennett Jr encaixa aqui como a hipocrisia encaixa nos Charlies de há dois meses atrás

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Hannibal Hanschke/Reuters

James Gordon Bennett Jr disse que “Um cão morto na Avenida do Louvre tem mais interesse que uma inundação na China”. Isto para nos explicar a proximidade como fator determinante do valor-notícia. Há cerca de dois meses atrás o mundo era todo Charlie Hebdo. Gerou-se uma onda de solidariedade onde uma massa de gente envergava orgulhosa que, naquele dia e nos dias seguintes, todos eram Charlie, todos eram liberdade de expressão, todos tinham voz. Hoje, cerca de dois meses depois, essa massa dissipou-se. Perdeu o orgulho, a liberdade de expressão e ficou rouca. Nem metade dos Charlies se fizeram ouvir com o massacre no Quénia. Foram, pelo menos, 148 mortes em favor, dizem, da religião. Foram 148 inocentes como eram os 12 do Charlie Hebdo. Os autores dos dois ataques têm até a mesma raiz, foram impulsionados pelo mesmo motor e matam, todos os dias, em nome da mesma fé. Não há absolvição plausível que perdoe os Charlies que se calaram desta vez.

A frase de James Bennett Jr encaixa aqui como a hipocrisia encaixa nos Charlies de há dois meses atrás. O ser humano tende a ser piedoso pelo que lhe está mais próximo e, na verdade, a França é já ali e o Quénia é quase noutro planeta. O que sucedeu em França podia, muito bem, ter acontecido em terras de Fernando Pessoa, já o massacre no Quénia é lá para terras do sol-posto, não chega cá. A hipocrisia é um dos grandes cancros das sociedades. É-se solidário apenas e só com aquilo que se quer, mesmo que ter-se sido solidário com o Charlie Hebdo signifique que se tem de estar, obrigatoriamente, solidário com o Quénia, com a Síria e todos os que têm sofrido às mãos de um Alá. O fator da proximidade não é válido quando existiu compaixão e fraternidade para com o jornal Charlie Hebdo e quando esses mesmos sentimentos se dissipam em massacres do mesmo tipo. A própria comunicação social se faz valer desse valor-notícia para explicar o espaço que deu ao Charlie Hebdo e o sussurro que se ouve sobre o massacre no Quénia. As notícias saem e o assunto tem espaço na agenda mas a dimensão que a comunicação social ajudou a criar com o Charlie não tem forma de se comparar ao Quénia. Isto porque não existe sequer uma dimensão e um movimento de solidariedade para com o Quénia. Nem para com a Síria. Nem para com o mundo além do Ocidente.

O mesmo mundo que se quis mostrar solidário cria agora uma ruptura na coerência e na sinceridade com que se moveu e faz florir o fingimento que foi o “Je suis Charlie”.

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Diana Jegundo, estudante de Jornalismo em Coimbra, vive para as palavras e para fazê-las gerar pequenos excertos
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