Luís M. Alves (1946-2015): um apaixonado melómano

O crítico de música clássica Luís M. Alves morreu nesta quinta-feira. Trabalhou no Expresso, no PÚBLICO e na Antena 2. Na quarta-feira, na Sala-Estúdio do Teatro Municipal São Luís, estreia-se O Nosso Irmão – Théo e Vincent Van Gogh, espectáculo em que foi consultor para a música. Augusto M. Seabra recorda o amigo.

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Luís M. Alves era um apaixonado melómano

Na passada quinta-feira, dia negro como de nenhum outro assim me lembro, soubemos com apenas uma hora de intervalo das mortes de Manoel de Oliveira e de Luís M. Alves, caríssimo amigo como muito poucos e companheiro de lides de crítica musical durante 30 anos.

O Luís formara-se no Técnico em Engenharia de Máquinas, de algum modo, e ainda que com uma especialização diferente, seguindo as pisadas da mãe, Luísa Maria do Amaral Alves, que fora das primeiras mulheres, senão mesmo a primeira, como creio, a licenciar-se em Engenharia Química, e assim se tornou um exemplo para outras: Maria de Lourdes Pintasilgo explicou publicamente que aquele exemplo precursor fora determinante para também ela fazer o curso de Engenharia Química – e já agora acrescento como me são tão gratas as memórias, e neste momento também as acrescidas saudades, dos momentos de convívio que tivemos os três, a minha queridíssima engª. Pintasilgo, o Luís e eu.

O Luís deu também aulas no Técnico, mas sobretudo teve um longo percurso profissional, dedicado sobretudo a questões de energia e tratamento de resíduos na Empresa Geral de Fomento e na Valorsul.

Mas, além disso, e é que nos importa, o Luís era um apaixonado melómano, que, aliás, desde cedo, nos anos 70, ainda antes do 25 de Abril, se começou a dedicar também à crítica musical. No final dessa década, sem nos conhecermos, já nos líamos mutuamente, intrigados até pela extrema similitude de perspectivas. Quando em 1979 houve no São Carlos um extraordinário Tristão e Isolda, então as coincidências de críticas eram de mais, porque um e outro não apenas falávamos desse espectáculo, mas dos exemplos anteriores de aproximações renovadas a Wagner que haviam sido A Valquíria e Os Mestres Cantores, dirigidas, respectivamente, por Silvio Varviso em 1973 e Gustav Kuhn em 1977.

O conhecimento directo tornava-se inadiável e viria a ser proporcionado por um comum amigo, o pianista Adriano Jordão, hoje administrador da Opart e portanto também do São Carlos.

Quando em 1981, sob o impulso do Vicente Jorge Silva, encetámos a aventura do Expresso – A Revista, o Luís Alves veio trabalhar connosco e acompanhou-nos, evidentemente, no PÚBLICO. Foram 20 anos de trabalho quotidiano conjunto e com nenhuma outra pessoa tive uma colaboração de trabalho tão intensa. Não era apenas repartir as tarefas de divisão das críticas e de discos, foram também as muitas, muitas tardes que passámos a ouvir, comparar e discutir diferentes interpretações de uma mesma obra, sobretudo, porque de partilhada estimação, o Così Fan Tutte de Mozart e as Sinfonias de Mahler.

Chegados os anos 2000, o Luís entendeu começar a retirar-se, inclusivamente vindo a reformar-se na vida profissional. Deixou também de escrever, embora durante anos ainda tivesse mantido a participação em programas de discos e discografias na Antena 2. Em 2009 tivemos um derradeiro trabalho conjunto: ele foi convidado para se encarregar da programação do 1.º Festival das Artes de Coimbra e pediu-me um programa de filmes.

Mas os contactos prosseguiam sempre, até porque o Luís mantinha todos os materiais, vinis inclusive, embora organizados com um método muito próprio, só seu. E de vez em quando eu pedia-lhe referências para me indicar, por vezes destas e daquelas óperas de Verdi. Há dois anos, já quase em desespero de causa por não conseguir encontrar a gravação da Sagração da Primavera dirigida por Karel Ancerl, perguntei se a teria. Quando me a passou, ainda disse que havia muito que não a voltara a ouvir e que era preciosa e distintiva, a interpretação mais “primitivista” da obra.

Fora-se afastando-se dos concertos, mas tornara-se um fã das teledifusões de óperas do Met na Gulbenkian. E continuava a seguir atentamente, e a gravar, as transmissões de ópera no canal Mezzo – e eu vou recordando estes factos e de repente penso o que não será o acervo de vinis, cd e dvd de ópera que deixou.

De vez em quando lá chegava novo email: “Augusto, é preciso que escrevas.” Há duas semanas, perguntava se eu tinha voltado a escrever a dias específicos, dava-me conta de que por motivos que não graves tinha tido um breve internamento. Na terça e quarta-feiras passadas tentei repetidamente telefonar-lhe com o fito de o desafiar insistentemente a vir comigo no sábado ouvir a Sinfonia n.º 2, Ressurreição, de Mahler, afinal a obra em relação à qual estávamos mais irmanados – e neste preciso momento, enquanto escrevo, estou outra vez a ouvi-la, “in memoriam Luís M. Alves”.

A noção de que já não voltarei a conviver com ele, o meu cúmplice musical de eleição, tem qualquer coisa de insustentável, de uma perda dolorosíssima, embora esteja certo que a sua memória me vai acompanhar, tal como deixa sentidas memórias noutros que com ele tiveram a possibilidade de conviver e trabalhar no PÚBLICO. Partiu um dos nossos melhores.

Na quarta-feira, na Sala-Estúdio do Teatro Municipal São Luís, estreia-se O Nosso Irmão – Théo e Vincent Van Gogh, espectáculo para o qual, com muito empenho e gosto, ele escolheu a música. E assim, “em diferido”, seis dias depois da sua morte, e por interposta escolha musical, teremos ainda um derradeiro sinal do Luís.  

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