Contra a tentativa de compreender o ISIS como “medieval”

Como medieval, não se pode confundir o antiquado, o religioso, o bíblico ou sequer o pensamento apocalíptico.

O PÚBLICO de 29 de Março de 2015, na Revista 2, trouxe-nos a versão portuguesa de um artigo de Graeme Wood, intitulado O que quer o Estado Islâmico?, que é uma tentativa de compreensão deste fenómeno profundamente inquietante da nossa contemporaneidade, que dá pelo nome de Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIS). Partilhamos inteiramente o intento do artigo em busca do entendimento de algo que nos enche de perplexidade e receio.

Apreciamos a amostra de consultas a simpatizantes e especialistas, no mundo ocidental, que o artigo articula. No entanto, o fenómeno ISIS continua a exceder todas as tentativas de explicação, e o artigo de Graeme Wood não é excepção, de modo que não nos oferece uma verdadeira solução para o problema da compreensão do ISIS.

Porquê? Porque apenas acrescenta que aquilo que nos falta para compreender o ISIS é reconhecer tratar-se de um movimento “religioso medieval”, como se bastasse a conjunção destes dois atributos para explicar todo o rol de atrocidades que ecoam das regiões do Médio Oriente sob o domínio daquele movimento, e a que temos assistido incrédulos.

O artigo de Graeme Wood defende, fundamentalmente, duas teses sobre o ISIS ou o autoproclamado Estado Islâmico: a tese de que este é um movimento islâmico, da mais estrita fidelidade ao exemplo e à profecia de Maomé; e a tese de que o mesmo é de cariz medieval, emergindo como que à revelia do nosso tempo.

Por um lado, o autor defende a primeira tese contra o entendimento do ISIS como não islâmico, porquanto trai o essencial e o melhor do islamismo; entendimento este que é protagonizado por Obama, ainda que seja comum a todos os muçulmanos a quem repugnam as práticas de escravatura, de crucificação, de decapitação e outras formas de execução ritual, que têm semeado o terror nas zonas conquistadas pelo ISIS.

Por outro lado, o autor defende a segunda tese, i.e., a de que o ISIS é um movimento de cariz medieval, por oposição a outros movimentos radicais islâmicos, como a Al-Qaeda. Ao contrário desta, que se deixa assimilar a um movimento político clandestino "com objectivos globais — a expulsão dos não muçulmanos da península Arábica, a abolição do Estado de Israel, o fim ao apoio às ditaduras nas terras muçulmanas" —, o ISIS empenha-se numa expansão territorial de acordo com o desígnio do profeta fundador, nutre-se de um pensamento religioso de tipo apocalíptico, e os seus apoiantes "falam com gozo dos 'modernos'".

Estes aspectos parecem ser suficientes para caracterizar o ISIS como medieval, mas, na realidade, não são, sobretudo se quisermos ser sérios e reconhecer que a Idade Média é um período estruturante da génese da civilização ocidental, enquanto o ISIS constitui uma ameaça a esta mesma civilização.

A Idade Média é uma categoria da historiografia ocidental tradicionalmente usada para o período que medeia entre os antigos clássicos e o seu renascimento cultural na modernidade. Trata-se, por isso, de uma categoria que, em rigor, não se aplica à história do mundo islâmico: o século de Maomé não é um tempo intermédio, é o início de uma nova era para os seus seguidores.

A Idade Média é decerto a época das cruzadas contra hereges e infiéis, mas, em campeonato de crueldade e matança, não é certo que aquela ultrapasse as façanhas de outras épocas, como o ainda próximo e já sofisticado século XX.

A Idade Média é também a época do nascimento das universidades e dos burgos que deram origem às cidades da Europa moderna; é também a época do renascimento de clássicos, como Aristóteles, em grande medida, por mediação de pensadores islâmicos não fundamentalistas.

Os medievais assumiam-se como modernos e não lhes passava pela cabeça a má reputação de “medievais”, que lhes viria a cair em cima por obra e graça de épocas posteriores. Qualquer semelhança com os actuais jihadistas, que gozam com os “modernos”, é pura coincidência.

E, com medieval, não se pode confundir o antiquado, o religioso, o bíblico ou sequer o pensamento apocalíptico. As perspectivas de fim de mundo não são exclusivas da Idade Média, já vinham da antiguidade, associadas à visão cíclica do tempo, tal como estão presentes de forma vívida nos medos que ensombram a nossa actualidade. Expressão disso é a cultura cinematográfica contemporânea, rica em filmes de catástrofe, quer no registo da espectacularidade de Hollywood quer no registo seco e árido de filmes de culto, como O Cavalo de Turim, de Béla Tarr (2012).

E, com espectáculo, combina a série de execuções rituais que o ISIS tem mostrado ao mundo inteiro, usando as novas tecnologias de informação. O espectáculo das execuções rituais tem atentado sistematicamente contra valores civilizacionais que julgávamos património comum da humanidade: contra a liberdade de expressão, a decapitação do jornalista americano; contra a liberdade religiosa, a decapitação de um grupo de trabalhadores egípcios cristãos; contra a solidariedade internacional na paz e na guerra, respectivamente, a decapitação do britânico que era membro de uma organização humanitária e a queima do soldado jordano enjaulado; contra os direitos humanos das crianças e das mulheres, a manipulação daquelas e a escravização destas; e até contra o valor da história, que o Ocidente aprendeu a prezar, a destruição de estátuas de antigas divindades já não veneradas.

Contra todos estes valores, o ISIS tem recrutado milhares de militantes em todos os países do nosso mundo ocidental, como se, dentro do nosso próprio mundo, estivesse a nascer uma revolta contra os seus valores fundamentais. Não tenhamos nós de vir ainda a travar contra ela uma guerra de civilização!

Chamar “medieval” ao ISIS nada desvenda, nada esclarece acerca da natureza deste movimento radical islâmico, mas acusa a necessidade de cultivar os estudos medievais nas universidades do mundo ocidental, a fim de que este não esqueça as raízes da sua civilização, em tempos de ameaça e perigo, como aqueles que atravessamos.

Professora da Faculdade de Letras da Universidade Lisboa, especialista em filosofia medieval

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