Uma orquestra que abre portas ao futuro

Em residência na Gulbenkian para preparar a digressão da Páscoa, a Orquestra Juvenil Gustav Mahler conta este ano com a participação de oito portugueses. O seu secretário geral, Alexander Meraviglia-Crivelli, explica como se gere a maior concentração de jovens talentos musicais europeus.

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O grau de excelência da Orquestra Juvenil Gustav Mahler parece incompatível com a idade dos seus instrumentistas, que oscila entre os 16 e os 26 anos COSIMO FILIPPINI

Quando ouvimos a Orquestra Juvenil Gustav Mahler (OJGM) é difícil acreditar que seja formada por instrumentistas cujas idades oscilam entre os 16 e os 26 anos, tal é o grau de excelência das suas interpretações, ao qual acresce um entusiasmo vibrante no acto de fazer música. Criada em 1986 em Viena, constitui um dos mais preciosos legados do maestro Claudio Abbado (1933-2014) e uma plataforma de desenvolvimento artístico para numerosos músicos oriundos de toda a Europa.

Desde 2007 que a OJGM tem sido uma presença assídua da temporada Gulbenkian, realizando este ano a sua terceira residência em Lisboa, durante a qual é preparado o repertório para a digressão da Páscoa, este ano preenchida com a monumental Sinfonia nº2, Ressurreição, de Mahler. Com direcção do maestro britânico Jonathan Nott, será interpretada no dia 4, próxima quinta-feira, na capital portuguesa e depois em Aix-en-Provence, Liubliana, Viena, Hamburgo, Madrid e Barcelona. A Gulbenkian recebe ainda dois programas extra (amanhã, 28, e terça-feira, 31), sob a direcção de Leo McFall, dos quais se destaca a ópera O Castelo de Barba Azul, de Bartók, em versão de concerto.

O número de jovens músicos portugueses seleccionados nas audições anuais tem variado, mas este ano atingiu um número recorde. A participação de oito instrumentistas faz com que Portugal seja a quarta nacionalidade mais representada, ficando apenas atrás da Alemanha, da Espanha e da França, num total de 127 jovens oriundos de 23 países. “As decisões finais são completamente baseadas nos resultados musicais, não temos quotas para cada país”, disse ao Ípsilon Alexander Meraviglia-Crivelli, secretário geral da OJGM. “Os portugueses foram seleccionados porque são muito bons!”. Reconhece porém que, quando há dez ou 15 anos começaram a fazer audições em Lisboa e Madrid, havia menos candidatos. “A colaboração regular com instituições como a Gulbenkian, que é um dos nossos mais importantes parceiros, ajuda a que o número de bons músicos que se apresentam vá crescendo. O nosso objetivo é acima de tudo unir os melhores instrumentistas europeus mas também servir de ajuda para que mais tarde encontrem um emprego. Pretendemos também contribuir para manter a vida musical de cada país.” A este respeito, Meraviglia-Crivelli lamenta que o número de músicos oriundos dos países de Leste seja cada vez menor. Quando Abbado criou a orquestra, uma das ideias fundadoras era a possibilidade de os jovens instrumentistas do Ocidente poderem tocar com os colegas das então repúblicas socialistas da Checoslováquia e da Hungria. “Antes da queda da Cortina de Ferro, tínhamos  muitos músicos checos, da ex-Jugoslávia, da Roménia...  Essa participação decresceu nos últimos anos e muitos músicos desses países abandonam-nos para estudar noutro lado. Não é boa ideia tirar os bons músicos da Europa de Leste para virem todos para o Ocidente.”

Os concertos da Páscoa de 2015 constituem uma ocasião especial para a OJGM, pois o programa será preenchido com a Sinfonia nº2, Ressureição, de Mahler, uma obra que a orquestra nunca interpretou em digressão. Serão solistas a soprano Chen Reiss e a contralto Christa Mayer e em cada uma das cidades da digressão haverá a colaboração de um coro local de reputação internacional. No concerto do dia 4, em Lisboa,  será o Coro Gulbenkian. Os dois programas extra no âmbito da residência na Gulbenkian serão preenchidos com música de Webern (Langsamer Satz, numa transcrição para trombones), Bartók (Divertimento para cordas, Sz. 113) e Dvórak (Serenata op. 44 e Sinfonia n.º 8) no caso do concerto do dia 28, e com a Suite Romeo e Julieta, de Prokofiev, e a já referida ópera O Castelo do Barba Azul, de Bartók, no caso do concerto de dia 31.

“A 2ª Sinfonia de Mahler tem um significado especial para nós pois está muito ligada a Claudio Abbado. Havia a intenção de que ele a dirigisse, mas com a doença teve de reduzir as digressões”, explica Meraviglia-Crivelli. “É uma obra maravilhosa, mas é também um grande desafio. Temos feito peças sinfónicas monumentais como a Sinfonia nº 8, de Mahler, ou os Gurrelieder, de Schoenberg, mas a oportunidade para fazer a 2ª de Mahler ainda não tinha surgido.” A direcção musical foi atribuída a Jonathan Nott, um maestro que já gravou todas as Sinfonias de Mahler e é uma referência nesse repertório. “É muito importante para uma orquestra juvenil que cada maestro tenha algo a dizer e não faça apenas mais um concerto de rotina. Claro que é politicamente correcto trabalhar com jovens, mas não é algo de que Jonathan Nott ou outros grandes maestros que têm colaborado com a OJGM (como Blomstedt, Pappano ou David Afkham...) precisem para as suas carreiras.”

Os programas são discutidos com cada maestro, constituindo muitas vezes um misto de propostas de ambas as partes. “Em relação aos programas que Leo McFall  vai apresentar, aproveitámos o facto de ele dirigir bastante ópera. Há obras que funcionam bem em versão de concerto como O Castelo de Barba Azul, de Bartók, e é também uma forma de levar mais ópera a Lisboa, pois sei que as temporadas do Teatro de São Carlos têm poucas produções. Os dois cantores, Elena Zhidkova e  Gábor Bretz, são extraordinários e já cantaram muitas vezes nesta combinação.”

A OJGM conta com uma discografia de alto nível, mas actualmente o lançamento de novos registos está dependente do financiamento e das oportunidades. “Só podemos gravar quando estamos em digressão. Temos feito muitos registos de concertos ao vivo e reunido um grande arquivo; espero que alguns possam sair em CD ou em DVD, mas é uma questão de dinheiro”, explica Meraviglia-Crivelli. “Vamos pondo coisas cá fora dependendo das oportunidades. Por exemplo, a Sinfonia nº 7 de Bruckner que saiu nas séries do Festival de Salzburgo já tinha sido registada há vários anos e a gravação do Pélleas et Mélisande. de Schoenberg, dirigida por Pierre Boulez, foi posta no mercado pela Deutsche Grammophone (DG) há dois anos mas tinha sido gravada há dez.” Neste último caso, a orquestra tinha feito o registo com o apoio de um patrocinador privado e propôs depois a publicação à DG com a condição de a OJGM ficar com todos os direitos. Este é o caminho mais razoável para as orquestras dos nossos dias. As possibilidades de gravar em estúdio são limitadas porque é muito caro. O tempo em que se ia para um estúdio durante vários semanas ou meses já passou.” Por outro lado, a orquestra tem  disponíveis mais de 20 vídeoclipes no YouTube, incluindo a série que foi feita há dois anos durante a última residência na Gulbenkian. 

A crise também tem afectado a OJGM nalguns aspectos, mas Meraviglia-Crivelli diz que a orquestra tem a vantagem de ser gerida por uma estrutura leve e por um pequeno staff. “Desde o princípio que os nossos projectos, digressões e concertos tiveram de encontrar forma de se financiar a si próprios. Mesmo nos bons tempos tínhamos de fazer coisas que sabíamos que o mercado iria comprar, ou seja, que fossem suficientemente boas, bem planeadas e atractivas. Nunca dependemos demasiado de dinheiros públicos.” Alguns países e promotores têm agora mais dificuldade em acolher a OJGM, mas procura-se que as parcerias não sejam quebradas. “Tentamos fazer programas interessantes com condições razoáveis. Especialmente em tempos de crise, temos de investir nas artes. E esse investimento nem sempre significa doar dinheiro, mas permitir que a vida musical continue”, sublinha o secretário geral. “Esta crise vai acabar, todas acabam um dia! Se cancelamos coisas à primeira dificuldade, depois é muito difícil recomeçar. Há quatro anos ainda estávamos presentes na Grécia. Acredite-se ou não, continuamos em diálogo para ver como podemos retomar essa colaboração, mesmo que tal implique sacrifícios do nosso lado.”

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