Um ano e 10.000 mortes depois, o ébola é uma lição para futuras epidemias

Dois estudos relatam avanços sobre uma nova vacina e a epidemiologia do ébola. Numa altura em que a doença está a retroceder nos países afectados, surgem alertas sobre a resposta a futuras crises sanitárias.

Partículas filamentosas do vírus do ébola (a azul) à volta de uma célula infectada NIAID

Há cerca de um ano, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a existência de um surto de ébola na África Ocidental. Desde então, já morreram mais de 10.000 pessoas, a enorme maioria na Guiné-Conacri, Libéria e Serra Leoa. A epidemia, a maior de sempre deste vírus hemorrágico descoberto em 1976, motivou a sua investigação mundial. A revista científica Science publica esta sexta-feira dois estudos sobre o ébola.

Um dos estudos avaliou a rapidez da mutação da estirpe desta epidemia, que teve uma oportunidade rara de se multiplicar intensamente na África Ocidental. E concluiu que o vírus não está a mudar tão rapidamente quanto se julgava, uma boa notícia para os médicos que estão a lutar contra a epidemia.

“É improvável que os tipos de alterações genéticas observadas até agora venham a pôr em causa os métodos de diagnóstico [do vírus] ou venham a afectar a eficácia de vacinas ou de potenciais tratamentos específicos”, conclui o artigo da equipa de Heinz Feldmann, virologista do Instituto Nacional das Alergias e Doenças Infecciosas em Hamilton, Montana, nos Estados Unidos.

No segundo estudo, uma equipa de cientistas desenvolveu uma nova vacina a partir de um vírus do ébola impedido de se multiplicar nas células por lhe ter sido retirado um gene importante. Segundo os investigadores, há uma vantagem neste método. “As vacinas construídas a partir do vírus inteiro têm muitas proteínas e apresentam o material genético do vírus ao sistema imunitário do hospedeiro, o que poderá provocar uma resposta imunitária mais abrangente e forte”, lê-se no artigo da equipa liderada por Yoshihiro Kawaoka, da Universidade de Wisconsin-Madison, nos Estados Unidos.

Os cientistas testaram a vacina em macacos-cinomolgos (Macaca fascicularis). E usaram diferentes métodos de vacinação: com uma dose da vacina como vírus modificado; com duas doses; com duas doses e um tratamento de água oxigenada, que o mata; e finalmente com duas doses do vírus e um tratamento de radiação gama, que também o mata.

A equipa usou a água oxigenada e os raios gama para testar se a vacina produziria imunidade mesmo com o vírus morto. Isto foi feito por uma questão de segurança, já que existe uma probabilidade hipotética de o vírus vivo fazer uma recombinação genética com outro vírus que esteja no corpo do hospedeiro, viabilizando assim a sua multiplicação e causando a doença. Estando morto, isto não pode acontecer.

Os resultados foram animadores. Enquanto o grupo de controlo desenvolveu ébola alguns dias depois de ter sido infectado com o vírus, os grupos que tinham recebido uma dose da vacina, duas doses e duas doses com água oxigenada sobreviveram à infecção. No grupo com uma dose, houve dois dos quatro macacos que adoeceram mas recuperaram. Enquanto nos outros dois grupos, os macacos nem sequer adoeceram.

Curiosamente, o grupo de macacos que recebeu a vacina com o vírus irradiado com raios gama também morreu. A equipa pensa que a irradiação destruiu as proteínas do vírus do ébola, que assim não produziram uma resposta imunitária nos macacos. “Em termos de eficácia, esta vacina dá uma protecção excelente”, considera Yoshihiro Kawaoka, num comunicado da sua universidade. O próximo passo poderá ser ensaios em pessoas.

O fim da epidemia?
Apesar de já estarem em curso ensaios clínicos em pessoas de três vacinas diferentes contra o ébola, duas na Libéria e uma na Guiné-Conacri, ainda não há nem uma vacina nem um tratamento comerciais contra a doença. Ainda assim, os últimos dados da OMS sobre a epidemia, divulgados esta quarta-feira (25 de Março), são positivos. Na semana de 22 de Março, registou-se o menor número de novos casos de ébola de 2015: 79 pessoas diagnosticadas. Por comparação, na semana anterior os novos casos tinham sido 150.

Estes casos distribuem-se assimetricamente: houve 45 pessoas diagnosticadas na última semana na Guiné-Conacri, 33 na Serra Leoa e apenas uma na Libéria, que nas três semanas anteriores não tinha tido nenhum caso novo.

“A doente está estável e está a responder ao tratamento”, disse Francis Karteh, responsável pela célula nacional de crise contra o ébola, referindo-se ao novo caso na Libéria. “Esteve em contacto com mais de 50 pessoas. Nós seguimos estas pessoas que estão todas nas suas casas e nenhuma tem para já sintomas do ébola”, disse à agência AFP. A doente é a mulher de um paciente que recuperou do ébola, adianta esta agência noticiosa.

Ao todo, já morreram 10.326 pessoas das 24.907 infectadas por este vírus hemorrágico, que é transmitido pelo contacto com secreções de alguém doente. A Libéria é o país mais perto de conseguir atingir a meta, traçada também pela Guiné-Conacri e Serra Leoa em Fevereiro, de acabar com o ébola até meados de Abril.

Na última segunda-feira, Ismail Ould Cheikh Ahmed, o responsável pela equipa da Organização das Nações Unidas de resposta ao ébola, afirmou que estima que a epidemia termine até ao final do Verão.

O surto surgiu primeiro no Sul da Guiné-Conacri. Mas só começou a chamar atenção a partir de Março de 2014. Na Libéria, os primeiros casos só surgiram no final de Março e só em Maio é que a epidemia chegou à Serra Leoa. A 8 de Agosto, quando já estavam infectadas 1779 pessoas e tinham morrido 961, a OMS declarou que era uma emergência de saúde pública de âmbito internacional. Mas foi muito criticada pelo atraso da resposta. “Houve provavelmente falta de conhecimento e um certo grau de arrogância”, assumiu Ismail Ould Cheikh Ahmed à BBC online.

Apesar de o problema ainda não estar resolvido, olha-se agora em frente. “Talvez a única boa notícia que surgiu da epidemia trágica do ébola é que poderá servir como aviso: temos de nos preparar para futuras epidemias de doenças que podem espalhar-se de uma forma mais eficiente do que o ébola”, escreveu Bill Gates, num artigo na revista The New England Journal of Medicine, publicado na semana passada.

O multimilionário referia-se à gripe, que se transmite pelo ar, e que já causou grandes pandemias. Segundo Bill Gates, que preside à Fundação Bill & Melinda Gates, o mundo perdeu muito tempo na actual epidemia do ébola a tentar responder a questões básicas: “Precisamos de um estudo rigoroso sobre o custo de construção de um sistema global de aviso e resposta [a surtos] e um plano que defina a contribuição de cada país.”

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