“Ouvi muitas barbaridades e vivi momentos difíceis”

Falhar o Mundial 2007 foi o grande desgosto da carreira de Adérito Esteves que teve que ultrapassar alguns preconceitos para se afirmar no râguebi

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Luís Cabelo

Aos 29 anos, quase a completar uma década de selecção nacional, Adérito Esteves recorda as “barbaridades” que ouviu quando começou a representar as cores nacionais e lhe perspectivaram que não ia “chegar a lado nenhum”. Não guarda mágoa. Emociona-se, sim, quando recorda a lesão que lhe tirou a oportunidade de lutar por um lugar no Mundial de 2007. Aí, deixa frases penduradas. Prefere nem pensar nisso. Quanto ao futuro, deixa um enigmático “quem sabe”. As responsabilidades de ser pai há um ano e meio obrigam-no a pensar duas vezes. Para já, divide-se em três mundos: o do campo, o da cozinha… e o de casa, onde tem de se “focar mais”.

 

A estreia na selecção dá-se em 2006, um ano antes do momento mais marcante do râguebi nacional, com a participação no Mundial 2007. Teres ficado de fora foi o pior desgosto da tua carreira?

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Completamente. Completamente. Ter uma lesão que vem do nada e ver-me fora de uma grande competição com o é o Mundial de XV… Não ter sequer oportunidade de competir e dizer: eu também estou aqui e quero ir… É muito complicado. Foi um dos maiores desgostos da minha vida. Já tive alguns e esse é um dos grandes. Mas a vida continuou. Consegui ir a dois mundiais de sevens – ao do Dubai e ao da Rússia -, agora o objectivo são os JO e depois, quem sabe…

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O Mundial 2019?

Talvez. Não sei. Já devo estar muito velho para ir (risos). Vai depender do estado do meu corpo, do meu estado psicológico e, claro, de como estiver a minha vida.

 

Não foi fácil o caminho para chegares ao que és hoje no râguebi. O que é que tiveste de passar?

Eu não gosto muito de falar sobre isso (pausa). O râguebi é um desporto de elites. Ter uma pessoa como eu, de côr, a entrar de repente e a “abrir” no râguebi português, vindo do nada, é um bocado estranho. Primeiro foi o aceitarem. E depois, reconhecerem: “Vá, este rapaz talvez tenha alguma qualidade e pode fazer-se jogador”. Eu ouvi muitas barbaridades: “Este não vai chegar a lado nenhum”, “não presta como jogador”. Coisas assim. Foram momentos difíceis. Tive de batalhar muito e de passar muito tempo a fazer de saco, a treinar, a ouvir os meus treinadores dizer-me “então vais ali, não treinas nem és convocado”. É complicado. Tu chegas aos 18/19 anos e pensas: “Deixei o futebol para isto?”. Mas depois, olho para o presente e para o que vivi e penso que valeu a pena. Tudo aquilo que ouvi e que passei.

                                           

Ou seja, tiveste dificuldades de integração na selecção?

Tive algumas, sim. Não dentro do grupo em si, mas de quem estava de fora. Com o tempo comecei a sentir-me bem e a perceber que aquilo tinha de ficar de fora do campo. De onde vinha. E o que me fazia ultrapassar esses problemas era mostrar-lhes que era muito melhor do que aquilo que diziam.

 

Teres partido o nariz ao Vasco Uva no primeiro treino também não ajudou muito…

(riso prolongado) Deixa-me explicar. Isso aconteceu porque eu era um bocado desengonçado. E o coitado do Vasco estava no local errado no momento errado. São coisas que acontecem quando estamos a treinar com grande intensidade. Foi um marco que ficou na nossa história e hoje damo-nos bem.

 

Experimentaste vários desportos antes de chegar ao râguebi. Se não fosses jogador de râguebi em que desporto te imaginas?

Talvez no futebol. Se calhar se me tivesse sacrificado mais e tentado bater a outras portas, podia estar no futebol. Também cheguei a jogar vólei e gostei. Fiz algumas amizades. Mas não era a mesma coisa. Ainda houve uma altura em que praticava as três modalidades ao mesmo tempo: ia ao futebol, ao râguebi e ao vólei e dizia “só consigo vir a um treino”. E as pessoas diziam que eu era maluco. Quando somos mais novos temos vontade de fazer tudo e mais alguma coisa. Mas estou bem onde estou. Tem sido um belo percurso.

 

Uma vez disseste que antes de entrar no râguebi nem sabias onde era o Dubai ou Hong Kong. O que é que o râguebi te deu além da carreira?

Deu-me a possibilidade de conhecer novas cidades, pessoas e culturas. A possibilidade de comunicar. Ir a Hong Kong ou a Macau. Eu sabia que Macau tinha sido uma colónia e tinha muitas influências nossas, mas estar do outro lado do mundo e ver escrito em português nos edifícios, nos autocarros é muito giro e gratificante. Só aí percebemos até onde os nossos navegadores conseguiram ir. Percorreram muitos mares. E para mim, se não fosse o râguebi, se calhar não conhecia nem metade desses países.

 

Enquanto jogares vai estar adiada a conquista de mais estrelas “Michelin” para Portugal?

(gargalhada) Essa história da estrela “Michelin”… Quando eu falei na estrela “Michelin” não estava a falar de ser eu a ganhar a distinção – eu quero, claro, mas agora não é possível. O que eu disse foi que o restaurante, o “Porto de Santa Maria”, está a lutar para voltar a ter uma estrela “Michelin”. Para eu ter uma estrela “Michelin” ainda faltam muitos anos. Falta-me dar à cozinha aquilo que dei ao râguebi: ficar lá horas e horas sem dormir, só a viver a cozinha, como vivi só o râguebi durante estes anos. Aí, talvez consiga chegar aos pés de quem tem essa distinção.

 

Achas que estás destinado ao estrelato seja no râguebi, ou na cozinha?

Eu esforço-me. Às vezes perco-me. Depois encontro-me. Mas esforço-me sempre. E quando eu me esforço consigo obter o que quero. O segredo é não desistir. É querer e trabalhar mais do que os outros. É mostrar que estou disponível. Eu acho que é isso que te diferencia dos que estão à tua volta. Isso é o que eu tento fazer, superar-me todos os dias.  

 

E como se conciliam esses dois mundos tão distintos como o râguebi e a cozinha?

Tu dizes dois mundos, mas ainda falta um terceiro, que é em casa. As pessoas perguntam-me sempre pelo râguebi e pela cozinha mas ainda não perceberam que é em casa que eu tenho de me focar mais (riso). Mas vá: é um bocado difícil. Por exemplo, agora vamos ter um torneio importante e o treinador veio pedir-me para dar um bocado mais [durante a entrevista o treinador veio falar com o Adérito para marcar um treino para a manhã seguinte]. Agora como o é que eu vou chegar ao restaurante e dizer que amanhã vou treinar outra vez ao meio-dia e por isso vou voltar a chegar mais tarde? No restaurante também é um trabalho colectivo e quando falta um pode dar buraco. Tenho de tentar agilizar as coisas falando com o chef e com o treinador para conseguir estar nos dois lados sem falhar – ou melhor, nos três.

 

E não tens falhado?

Honestamente, pensava que não ia conseguir mas por enquanto tenho conseguido. Também tenho um chef e um patrão no restaurante que são impecáveis e aceitaram esta situação. E a selecção também acaba por ceder uma parte. Sabem que eu tenho de seguir com a minha vida, porque o râguebi não nos permite ir mais além e nós temos de seguir outros caminhos. Além disso tudo ainda há o clube que é quem acaba por sofrer mais: tem um atleta fora durante muito tempo. Mas apesar de ser muito cansativo, tenho-me aguentado.

 

O tempo em que não estás no campo ou na cozinha é suficiente para te dedicares à família?

Acho que chega para tudo. A minha namorada acha que não (risos). Eu não passo quase tempo nenhum em casa, mas o tempo que passo tento dedicar ao máximo ao meu filho. É difícil. Há passos que eu não consigo acompanhar quando estou fora. Agora há o skype e dá para manter o contacto, mas é um bocado complicado. Mas cada coisa no seu tempo. Agora estou focado nos JO e vamos ver como vai ser a minha vida. E depois vou ter o resto do tempo todo para passar com eles. Desde que ela não me deixe (risos).

 

O apoio da tua namorada deve ser muito importante.

Claro. É muito difícil para ela. Na maioria do tempo ela está sozinha. Está com uma criança e sem mim. Mas com jeitinho tudo se consegue.

 

O teu filho é o teu melhor ensaio?

É. Sem dúvida. É os olhos do pai. O pai agora só pensa no menino.

 

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