As muitas Últimas Palavras

O concerto Cristo na Cruz do Coro Casa da Música foi uma realização memorável, pelo ineditismo da versão e pela exaltante interpretação vocal.

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João Messias/Casa da Música

As Sete Últimas Palavras de Cristo na Cruz é uma obra ímpar na história da música europeia, pela singularíssima estrutura, com oito sucessivos movimentos lentos, uma Introdução e as Sonatas correspondentes aos textos dos Evangelhos, mais um Final, um extraordinário andamento rápido e de grande impacto dramático, o Terramoto – Presto e com tutta la forza, e pelo facto de existir em quatro diferentes versões.

Originalmente, a obra, uma encomenda da Oratória de Santa Cueva, em Cadiz, integrava o ofício da Sexta-feira de Paixão, destinando-se a uma orquestra de câmara, com as Sonatas precedidas da enunciação das Palavras pelo celebrante e os sermões alusivos. Depois, Haydn realizou uma versão apenas instrumental, para quarteto de cordas, e autorizou e reviu uma transcrição para pianoforte. Enfim, tendo ouvido uma adaptação como oratória, com solistas, coro e orquestra, decidiu elaborar ele próprio uma versão com essas características, a sua primeira colaboração, antes de A Criação e As Estações, com o barão Von Swieten, que escreveu o libreto.

Isto no tocante à História, porque em práticas musicais recentes tem havido outros exemplos, como a “reconstituição” da versão original com novos e expressos textos, a realização meramente instrumental dessa versão, e interpretações da de quarteto, mas as Sonatas sendo precedidas de textos, ou ainda aumentada para orquestra de cordas.

Quando havia no Centro Cultural de Belém a Festa da Música, na de 2001, dedicada a Haydn e Mozart, houve uma raríssima oportunidade de ouvir a obra em duas das versões, a de quarteto de cordas e a oratória. Agora houve uma inusitada ocorrência com a apresentação com três semanas de intervalo de duas outras propostas, a de um Concerto-Meditação com nova compilação de textos e encenação de Jean-Philippe Clarac e Olivier Deloeil, na Gulbenkian, mas que de resto será também apresentada na Casa da Música em Novembro, e, no passado dia 22, a interpretação de uma “enigmática” versão para coro, incluindo os solistas, e piano. Acresce ainda, pasme-se na sucessão, que o Concerto de Páscoa da Metropolitana de Lisboa no CCB, no próximo dia 5 de Abril, será a versão de oratória!

Sendo tão inusitada a circunstância, justificam-se algumas considerações sobre a tal realização cénica na Gulbenkian, antes da abordagem do concerto de domingo.

Não sendo em princípio extravasante ou ilegítima, até porque os cerimoniais religiosos como os da Paixão têm também as suas componentes cénicas, a proposta, muito à moda de um tipo de realizações mais de instalação, vídeo e cenografia que propriamente de encenação, é superficial e gratuita, enfadonha e mesmo demagógica.

Basicamente, trata-se da projeção de um vídeo turístico-político, primariamente político, de uma visita a Jerusalém, num écrã de três cortinas, tendo por trás uma estrutura metálica em vários andares, e enquadrada por algum equipamento luminotécnico, muito à Bob Wilson, inclusive decalcando uma disposição de Einstein on the Beach, que, bolas!, já data de 1976. O pior, contudo, é mesmo o vídeo, com uma repetitiva insistência de imagens de pessoas ouvindo os seus iPods na cortina central, nas laterais chegando-se à superficialidade demagógica de um dos lados ter imagens de judeus e o outro de árabes.

A colagem de textos de mil e um autores, de Martin Luther King, Simone Weil ou Bernanos a Pascoaes e Raul Brandão, passando por Leonard Cohen, Goethe ou Oscar Wilde, é um digest profundamente indigesto. Enfim, o actor, João Reis, notoriamente ressentindo-se da falta de uma efectiva direcção, ostentou uma declamação pomposa e enfática. Em suma, é uma proposta assaz lamentável.

Mas falemos então da tal “enigmática” versão ouvida, no domingo, na Casa da Música. E o enigma persistiu, porque as notas ao programa nada esclareciam, o que só foi possível fazer directamente junto do maestro Paul Hillier.

Trata-se de uma edição provavelmente de inícios do século XIX, em que as partes corais retomam em efectivos restritos as da oratória de Haydn, mas, contudo, a parte pianística não é exactamente uma redução das partes instrumentais dessa versão, mas, sendo-lhe próxima, tem alterações e uma escrita própria. Quem sabe, poderá mesmo ter sido a 1.ª audição moderna desta versão, mais uma de uma obra proteiforme como nenhuma outra.

A realização coral, com 18 cantores, foi absolutamente superlativa, mesmo das mais memoráveis do Coro Casa da Música, cabendo ainda referir os coralistas que se encarregaram das partes solistas (outro lapso do programa), Ângela Alves, Iris Oja, André Lacerda e Luís Rendas Pereira, sobretudo a primeira, soprano, com um timbre e uma emissão claríssimos.

Todavia, a este momento exaltante não se pode deixar de fazer um importante reparo: a realização pianística. Não se tratou de uma questão da intérprete, Elsa Marques da Silva, de bem reconhecidas capacidades, mas sim do próprio instrumento. Eis um caso em que muito se sentiu a falta de um pianoforte de época no lugar do moderno piano utilizado. Se o instrumento histórico tem uma sonoridade menos poderosa, não só possui cores muito particulares como uma reverberação que pode ser especialmente intensa e dramática em fortíssimos como os do Terramoto final da obra.

Pronto, já se sabe, passam os anos e as instituições musicais como a Gulbenkian e a Casa da Música argumentam sempre com os custos de aquisição de um instrumento de época, mas também já foi possível à Casa recorrer à disponibilização de um instrumento privado existente no Porto, e neste caso impunha-se que tal hipótese tivesse sido devidamente equacionada.

Este é o reparo, importante, que não pode deixar de ser feito a uma realização memorável, pelo ineditismo da versão e pela exaltante interpretação vocal. 

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