O exercício de funções políticas, a advocacia e o Parlamento

Se o princípio é o da desconfiança, por que razão tem mais interesses “corporativos, profissionais ou particulares” um advogado do que um médico, um dirigente sindical ou um professor?

1. A título de registo de interesses, lembro que fui deputado à Assembleia da República (AR) e exerci advocacia entre Março de 2005 e Junho de 2008 (altura em que suspendi a inscrição na Ordem dos Advogados – OA, por ter sido eleito presidente do grupo parlamentar). Em Setembro de 2009, já no Parlamento Europeu, renovei a inscrição na OA.

Direi aqui o que penso, sabendo que não é politicamente correcto, nem conveniente nem popular e que será sempre usado, à míngua de outros, o argumento da defesa em causa própria. Mas, por enquanto, a magistrados e a advogados ainda é estatutariamente permitida a defesa em causa própria. E aos arguidos, que saiba, ainda é arbitrado o direito a falar (e não apenas a permanecer silente). Para já, claro.

2. O primeiro logro em que muitos incorrem, uns por desconhecimento, outros por habilidade, é o de misturar o poder legislativo com o poder executivo. O poder executivo é, por natureza, um poder de decisão de casos concretos, geralmente estruturado em órgãos unipessoais ou em órgãos colegiais pequenos, onde os diferentes titulares dispõem de poderes próprios (pelouros). O poder legislativo, consubstanciado num colégio de grande dimensão, é basicamente um poder normativo, de estabelecer quadros gerais e abstractos, que só remotamente tocam as situações individuais e específicas. Esta é justamente uma das razões pelas quais tenho defendido a limitação de mandatos para os postos executivos e já não a defendo para os cargos legislativos.

A consideração desta diferente natureza e estrutura – que aqui se apresenta de modo simplista e a traço grosso – faz com que os problemas de corrupção e de tráfico de influências se ponham essencialmente a respeito dos executivos e não a respeito do legislativo. E enquanto a opinião pública portuguesa não se consciencializar disso, as salvas e os tiros vão sempre errar o alvo. Basta pensar na dimensão da AR para logo se ver que, para aprovar um diploma ou uma moção, é necessário convencer dezenas e dezenas de deputados. Ocorrendo o processo de legiferação e a votação num ambiente de escrutínio público, em que há controvérsia parlamentar, possibilidade de denúncia e de confronto aberto. Acaso será crível que um deputado, por ser deputado, seja tão poderoso e influente que domestique e colonize uma câmara plural inteira e ainda a imprensa que nela respira e habita? Voltando ao binómio executivo-legislativo, será que já alguém parou para pensar que os políticos ou ex-políticos cujos nomes são habitualmente invocados como exemplos devem a sua alegada influência, não ao facto de terem sido deputados, mas à circunstância de terem sido membros de órgãos executivos (e do Governo, em particular)? E alguém crê que essas pessoas, supostamente poderosas, deixam de o ser, por magia, só por deixarem de ser deputados? Continuando na senda das perguntas: o facto de alguém ser deputado e exercer concomitantemente uma profissão (designadamente, a de advogado) é verdadeiramente um factor que acrescenta influência e poder? Quantos dos actuais deputados que exercem outra profissão, e designadamente, a advocacia, são razoável ou minimamente conhecidos na opinião pública? Alguém é realmente capaz de elencar os seus nomes?

3. Devo dizer que, embora ache um mau modelo, compreendo aqueles que, como o PCP ou o BE, defendem uma estrita exclusividade dos deputados. É um modelo que levaria à total funcionalização do Parlamento, à sua transformação numa agência de gabinetes partidários, mas ao menos tem certas virtualidades em sede de eficácia e trata todos os cidadãos por igual. Não surpreende que essa proposta venha do PCP, para quem os políticos respectivos não passam de funcionários do partido (mesmo no seu estatuto remuneratório). E também não espanta uma tal proposta, vinda dos lados do BE, que basicamente recruta os deputados na função pública (e, por conseguinte, limita-se a substituir uma função pela outra).

Mas esta é uma visão seriamente redutora do Parlamento e da sua função numa democracia. O Parlamento é uma instituição que deve estar radicada na sociedade civil e que deve espelhar essa diversidade social, estando em ligação dinâmica com as empresas, as universidades, as associações, os sindicatos, a pluralidade de corpos e representações sociais, em suma. E, por isso, é bom que haja diversidade de formações e de proveniências, que haja ligações ao terreno e à experiência, que haja capacidade de comunicar no dia-a-dia com o cidadão comum, saindo do casulo do formato das iniciativas partidárias. Neste sentido, a admissão do exercício de profissões em conjunção com mandato de deputado deve ser a regra e não a excepção. Haverá decerto casos em que se justifica algum impedimento ou alguma incompatibilidade, mas a generalização e globalização das interdições consubstancia um terrível empobrecimento. Nessa hipótese, para a qual caminhamos largamente, ficamos com todas as desvantagens da exclusividade e sem nenhuma das vantagens que essa exclusividade putativamente poderia criar.

4. A obsessão com os advogados – muito estimulada pelos próprios advogados, pela Ordem e por um antigo bastonário que é hoje político e que antes acumulava, sem qualquer prurido, as profissões de advogado e jornalista – é incompreensível. Se o princípio é o da desconfiança, por que razão tem mais interesses “corporativos, profissionais ou particulares” um advogado do que um médico, um dirigente sindical ou um professor? E, nesse plano da desconfiança, não poderá alguém estar agenciado a defender um qualquer interesse, independentemente da profissão que exercia ou exerce?

A questão merece desenvolvimentos e só se resolverá, não com proibições, mas com transparência. A regulamentação do lobby, o registo de interesses, a publicidade das declarações de património e rendimentos e até da matéria fiscal (agora tão controversa) podem ajudar. A proibição demagógica não ajudará.

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