Queriam todos viver numa favela

Quem perder alguns minutos a ver as imagens da manifestação no Brasil terá algumas dificuldades em distingui-la de um "sketch" de humor

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Bruno Kelly/Reuters

No passado dia 15 de Março, aconteceu uma coisa que dificilmente me entra na cabeça: num país que viveu 21 anos sob uma ditadura militar, a direita conservadora (e branca, acrescente-se) encheu as ruas de 26 capitais de Estados e outras 125 cidades para pedir uma intervenção militar. Fê-lo sob um reaccionarismo atroz e deixando claro que o perigo anda à solta no Brasil.

A direita reorganizou-se tendo por base a classe média branca. As manifestações foram convocadas pela Internet, através de grupos de direita e extrema-direita, e a comunicação social, entretanto, encarregou-se de fazer caminho. Um dia antes da manifestação, Aécio Neves juntou-se ao molho através de um vídeo.

As manifestações, propagadas em várias cidades, diziam-se "pró-impeachment". Mas foram mais ou menos manifestações sem tom, onde coube tudo. Uns dias antes de ocorrerem, começou a alastrar-se a ideia de que seriam manifestações contra a corrupção. Contudo, o conteúdo social e político foi outro: foram manifestações contra a democracia e contra as políticas sociais. Em muitos lugares, foram declaradamente anti-comunistas. O ponto alto é que isto aconteceu sem que os manifestantes soubessem bem o que era o comunismo: Dilma Rousseff foi acusada de impôr o comunismo ao povo e, ao que parecia, os manifestantes estavam cansados da doutrina marxista nas escolas.

Quem perder alguns minutos a ver as imagens da manifestação terá algumas dificuldades em distingui-la de um "sketch" de humor. Desde cartazes confusos, que pedem a intervenção militar porque é o povo quem manda, ao mau gosto das representações de Lula e Dilma enforcados, tudo pareceria muito estranho se não estivessem ali suásticas a assinar a estupidez. Pelo meio, a revolta com esta onda comunista que varre o Brasil a torto e a direito apesar de inexistir: “comunista é bom morto”, “comunismo fora do Brasil”.

Podia parar por aqui, não tivessem estas sido manifestações sem freios: desde gente a defender o feminicídio (!) a gente a ser espancada por estar vestida de vermelho, tudo teve lugar na selva. Pelo meio, as imagens ainda mostram duas jovens sorridentes com uma "t-shirt" em que está escrito “Presidente, queremos nossa bolsa”, com um desenho de uma bolsa Chanel. Houve muita coisa nojenta nesta manifestação, é verdade, mas pouca me terá chocado tanto quanto a insensibilidade social de quem se manifesta em tom jocoso contra um plano de atenuação de pobreza e extrema pobreza que é posto em acção em famílias cuja renda familiar per capita é inferior a 77 reais por mês (cerca de 25 euros), no caso da pobreza extrema, e a 154 reais por mês (cerca de 50 euros), no caso da pobreza. Sorridentes e de cabelo ao vento, as manifestantes posavam paras fotografias, pedindo apoio à presidente.

Não querendo fazer a corte ao PT (acusado do 11 de Setembro!), parece-me que o ódio exacerbado que lhe foi destinado se deve menos à corrupção do que às políticas de emergência social que pôs em prática. Pelo meio, multiplicavam-se os cartazes com dizeres como “Luto pelo fim da democracia. Intervenção militar, já!”. Enfim, a solução é simples: desertem dos condomínios e sigam para a favela. Lá terão tudo que procuram: um Estado mínimo e uma Polícia Militar que faz o que lhe vem à cabeça.

Isto podia ter piada. Só não tem porque é real.

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