Fernando Pessoa escolha-múltipla

Sempre senti que, por ser publicado tão tardiamente, Pessoa era nosso contemporâneo, a escrever para nós e connosco, um par a lançar ideias para o nosso tempo

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Estive na Casa Fernando Pessoa a assistir ao lançamento do livro “Poemas de Alberto Caeiro”, uma edição crítica de Ivo Castro publicada pela Imprensa Nacional Casa da Moeda. A sessão foi apresentada por Richard Zenith e a conversa entre este e o editor volveu sobretudo em torno das divergências de posição face a um problema que a edição da obra de Pessoa traz.

O poeta deixou escritas em torno de grande parte da primeira versão dos poemas inúmeras hipóteses de palavras que poderiam substituir as originais, o que força os editores a decidir palavra a palavra e poema a poema qual a variante a publicar. Debatem-se estes sobre qual seria a intenção do autor, qual a versão do poema a que ele terá chamado final.

Zenith é apologista de uma certa interpretação por parte do editor, que intuirá qual das versões é a mais bem conseguida e a que se aproxima mais do espírito geral da obra. Castro defende que se deve sempre escolher a versão mais recente, a qual por certo, ao ser a última, corresponde à versão que o autor teria por final. Zenith relembra, contudo, que Pessoa não risca nenhuma das hipóteses prévias ao acrescentar uma nova, deixando tudo em aberto.

Mas e se nenhuma das variantes do poema for a correcta? Como se vê pelas inserções de novas palavras com diferentes lápis e canetas, o processo meticuloso de Pessoa passava por uma revisitação dos textos, aos quais ia acrescentando novas e variadas soluções. A intenção parece ser a de fazer a escolha num futuro a que não chegou.

Sempre senti que, por ser publicado tão tardiamente, Pessoa era nosso contemporâneo, a escrever para nós e connosco, um par a lançar ideias para o nosso tempo. Contudo acredito que a sua contemporaneidade se deve não só a isto, mas também ao facto de ter deixado uma obra que reflecte até ao nível mais profundo a realidade de uma maneira que agora começamos a entender melhor.

Ao oferecer em cada poema múltiplas variações do mesmo, Pessoa coloca nele todas as opções em simultâneo e ao mesmo tempo e só com a chegada do editor passa então a existir uma. O poema de Pessoa está para a literatura como o gato de Schroedinger está para a física quântica. Quando encerrado na folha anotada diversas vezes com outras opções de palavras, o poema contempla tudo e todas as hipóteses vivem ao mesmo tempo, contradições e paradoxos incluídos, o que supera a afirmação de totalidade da sua obra como a conhecemos, e a materializa.

Confesso que acho pouco importante tentar adivinhar a intenção final do poeta porque me parece que a decisão não foi tomada. Não creio que haja uma resposta certa, e nem o próprio Pessoa poderia adivinhar que opções viria a escolher no futuro.

Ser total e múltiplo era o seu intento, a ferramenta escolhida a heteronímia. Acredito que é também em cada poema que abre em si todas as hipóteses possíveis e as deixa em aberto, não para que escolhamos, mas para que as possamos ver a todas, que o poeta se cumpre, e deixo uma provocação: para quando uma edição de Fernando Pessoa escolha-múltipla?

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