Antes do ponto final a comissão BES ainda tem muitas interrogações

Depois de mais de quatro meses de trabalhos intensivos, as audições da Comissão Parlamentar de Inquérito ao colapso do GES e do BES vão terminar como começaram: com a presença das autoridades.

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Ricardo Salgado, que já foi ouvido no parlamento, tratava dos assuntos do BESA directamente com Álvaro Sobrinho Daniel Rocha

Esta terça-feira, será a vez do governador do Banco de Portugal (BdP) e do presidente da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) serem ouvidos na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que reservou o dia de amanhã para receber Maria Luís Albuquerque, ministra de Estado e das Finanças.

À semelhança do que se verificou na primeira ronda de audições, quando a CPI chamou, no mesmo dia, os dois primos direitos, os presidentes do BES, Ricardo Salgado (que já voltou ao Parlamento) e o do BESI, José Maria Ricciardi, os deputados decidiram repetir a estratégia convocando esta terça-feira Carlos Costa (15h) e Carlos Tavares (9h) para uma “quase” acareação de depoimentos.

O governador, o segundo a falar, vai responder aos deputados condicionado pela intervenção da manhã do presidente da CMVM, no que será uma espécie de confronto de versões, tendo em conta que em Novembro, na sala 6 do Parlamento, defenderam pontos de vista distintos sobre o momento da falência do GES e a contaminação ao BES (também infectado por decisões da sua gestão). E apresentaram análises distintas sobre as suas responsabilidades no processo.

Em causa estão, sobretudo, três capítulos do dossier: a venda em larga escala de divida de empresas do GES falidas a clientes do banco; o aumento de capital do BES, em Maio, de mais de mil milhões de euros num quadro já descontrolado; o período que antecedeu o anúncio de que ia haver uma intervenção no BES, marcado por rumores, e com as acções a serem negociadas na bolsa em clima de especulação.

Na quarta-feira, às 16h, Maria Luís Albuquerque (com a tutela do sistema financeiro) regressará a São Bento, para dar as suas justificações sobre a reacção tardia do Governo. Todos os depoimentos recolhidos pela CPI apontam para o conhecimento do Governo da situação do BES, pelo menos desde finais de 2013, sem ignorar que o tema estava nos jornais há cerca de um ano. Deste modo, e depois de em Novembro, ainda na fase incipiente dos trabalhos, Costa, Tavares e Albuquerque terem avançado com as suas versões particulares do dossier BES/GES, nesta última ronda, e face à complexidade e ao volume de informação que chegou à CPI, os três não terão grande margem senão procurar clarificar algumas das contradições e omissões.

Entre Novembro e final Março, passaram 51 testemunhas pela CPI, que recebeu de Passos Coelho, de Vítor Gaspar, de Carlos Moedas e Olli Rehn, depoimentos escritos. Já alguns estrangeiros chamados, como o presidente do Eurofin, Alexandre Cadosh, declinaram o convite e não foram intimados porque o Parlamento não tem poder para os convocar à força.

Problemas conhecidos pelo menos desde 2012
Os trabalhos parlamentares garantiram que factos relevantes, alguns do domínio público, mas que não estavam confirmados ou que tinham sido mesmo desmentidos, tivessem sido validados no Parlamento ou por documentação ou directamente pelos próprios protagonistas ou fontes.

A tese dos supervisores de que “se um banqueiro quiser esconder os factos, nós não os poderemos detectar” arrisca tornar-se uma bomba ao retardador. O volume de informação que desembocou na CPI ao longo destes quatro meses torna impossível dizer que os problemas não eram conhecidos das autoridades pelo menos desde 2012. O que levanta a questão: porque não soaram na baixa pombalina os alertas mais cedo?

Em Maio de 2012, o PÚBLICO divulgou as conclusões de um relatório interno do Banco Nacional de Angola (BNA): “O BNA está a acompanhar em permanência a situação de liquidez do Banco Espírito Santo Angola (BESA) depois de, há cerca de um ano, ter sido obrigado a intervir para resolver problemas de tesouraria”. Em paralelo, o BESA estava a contagiar o BES. Em 2007, os créditos do BES ao BESA totalizavam 700 milhões, e com a crise dispararam. E explodiram em 2013, com um pico de 4000 milhões.

Apesar dos números constarem dos relatórios das sociedades e de estarem reflectidos nas contas anuais, a situação só foi alvo de reparo por parte dos auditores (KPMG Portugal e KPMG Angola) e do BdP no segundo semestre de 2013. O supervisor ordenou a Ricardo Salgado que constituísse uma provisão para acomodar a perda potencial associada a 3000 milhões de mau crédito, o que atiraria o BES para a beira do abismo e exigia uma intervenção. Como decorria o ETRIC - inspecções da troika ao sistema, e para evitar o efeito negativo nas contas do BES e ganhar tempo para resolver os problemas, o BdP aceitou que a divida do BESA ao BES fosse protegida com uma garantia estatal angolana. Sem a provisão constituída e ainda sem o aval de Luanda, apenas concedido em Dezembro de 2013, o BES esteve a competir no mercado tecnicamente “falido”.

Por essa altura, já o BdP estava a reavaliar a idoneidade de Ricardo Salgado, após o i e o Sol terem noticiado, em 2012, de que o banqueiro tinha fugido por três vezes ao pagamento de impostos, em resultado da comissão/presente oferecido pelo cliente José Guilherme (o mesmo que não compareceu perante a CPI). Ainda que o contexto do banco, em Agosto de 2013, fosse de descontrole, o supervisor não “impôs” a sua saída, recorrendo à fatalidade: “A lei não o permite.”

Outro tema controverso, que separa Costa e Tavares, envolve os clientes do BES que financiaram o GES através de papel comercial. O Jornal de Negócios noticiava na segunda-feira que a solução final poderá ser propor aos clientes lesados aceitarem perdas de mais de metade do valor investido, o que não se afigura como pacífico.

O assunto remonta a Maio de 2008, quando Ricardo Salgado colocou a sua rede de retalho ao serviço do GES, levando milhares de clientes do banco a subscreverem em larga escala unidades de participação de dois fundos, ES Liquidez e ES Tesouraria, que concentravam as suas aplicações em sociedades do seu universo. Em 2013, o ES Liquidez tinha 83,12% do seu património (fundos captados junto dos clientes do BES), 2200 milhões, investidos na compra de divida das empresas familiares (como a ESI e a Rioforte), já incapazes de ir ao mercado. Ou seja: para ajudar o GES, o BES, via ESAF-Espírito Santo Activos Financeiros, pegou em dívida emitida pelas sociedades familiares e colocou-a nas carteiras dos clientes. Toda a informação estava reflectida nos relatórios de mercado publicados pela ESAF e en Setembro de 2013 chega ao domínio público, via comunicação social.

Apesar do conflito de interesses e do incumprimento das regras de diversificação, a CMVM não travou a evolução acentuada da exposição do BES ao GES, via clientes. No final de 2013, a CMVM intervém mas não evita que o BES aplique directamente o dinheiro dos clientes em papel comercial das sociedades, entre elas a ESI e a Rioforte. Para garantir o reembolso aos clientes, o BdP forçou Salgado, em Fevereiro de 2014,  a constituir uma provisão de 700 milhões de euros, o que fez dando em garantia a Tranquilidade, mas que apenas valia 200 milhões (já vendida entretanto). Actualmente, há 1800 milhões de euros  de investimentos de clientes do BES ainda bloqueados, dos quais 800 milhões são aplicações de emigrantes.

Investimentos pedidos aos accionistas
A correspondência entregue na CPI traz outra indicação que não ajuda as autoridades: em Novembro de 2013, o ex-banqueiro deu conta ao BdP de que a ESI tinha um passivo de 6000 milhões, com uma parte oculta. E a 3 de Dezembro, Carlos Costa avisou Salgado para os riscos de insolvência da holding e deu-lhe 27 dias para sanear os problemas. Problemas que o banqueiro não quis ou não pôde resolver. Recorde-se que nos últimos anos o BES exigiu grandes investimentos aos seus accionistas, sem que os remunerasse de modo correspondente ao esforço pedido, o que levou, a semana passada, na mesma CPI, Fernando Ulrich, a questionar por que razão o facto foi ignorado.

Ainda que Carlos Costa surja como o centro de todas as críticas (por fiscalizar o sector), Carlos Tavares e Maria Luís Albuquerque (que acompanhou os trabalhos da troika e é responsável por evitar o contágio sistémico) estão também debaixo de fogo. Ulrich veio já retirar meia-pressão sobre o supervisor bancário: “Não estou disponível para dizer que a culpa é toda do BdP” e “do que vivi […] não é possível excluir o Governo desta situação.” Ulrich relatou dois episódios. Um deles em resposta a Vítor Gaspar, que declarou nunca ter sido alertado pelos “operadores financeiros”, onde Ulrich se inclui, para o que se passava no BES. O banqueiro desmente. E  evoca um encontro com o ministro, em “finais de Maio ou início de Junho de 2013”, a quem foi manifestar “preocupação com a situação no GES e no BES". E, em menos de 48 horas, o presidente do BPI diz que foi contactado por “um alto funcionário” do BdP que “disse que o ministro levantou o assunto junto do governador e o governador instruiu-me para falar consigo”. Aos deputados, garantiu ainda que falou com “detalhe” das suas preocupações, mas não sabe o que daí resultou. 

A outra ocorrência relatada por Ulrich tem como palco uma reunião com a troika, onde estava o BdP. Perante a sua insistência em abordar o tema GES/BES “a pessoa [da troika] com quem falava mandou-me calar e disse que estava ali para falar sobre o BPI e não sobre os outros bancos". "E eu disse que se não pudesse falar me ia embora. E falei”. Ulrich terminou a audição na CPI a repartir responsabilidades por todos: gestão do BES e do GES, accionistas, auditores, em primeiro lugar, mas também supervisores e Governo. Na carta dirigida ao Parlamento, Passos Coelho confirmou o que já se sabia: que no último trimestre de 2013, José Maria Ricciardi, que mantinha um diferendo público com Salgado, lhe facultou informação sobre a situação do GES/BES.

No final de 2013, o BES falia aos olhos de todos
Assim, em Dezembro de 2013, os dados sobre o futuro do segundo maior banco privado (e de um grupo com interesses em vários sectores de expressão internacional) estavam lançados. O BES falia aos olhos de todos. E havia informação suficiente para que BdP e Governo (ambos com enorme poder de persuasão) tivessem forçado Ricardo Salgado a pedir acesso à linha de recapitalização da troika, parte via Coco’s, à semelhança do que BCP, BPI e Banif haviam feito.

Não é razoável que um plano nesse sentido não tivesse começado a ser preparado. Isto, apesar da garantia estatal angolana (de "duvidosa elegibilidade", como escreveu o BdP) manter o BES em cima da linha de água. O que permitiu a Ricardo Salgado continuar a resistir a uma solução que trouxesse gestores indicados pelo Estado para dentro de um grupo.

As três audições agendadas para esta semana seguem-se à de Ricardo Salgado, o ex-presidente BES e o rosto do colapso do grupo empresarial, que voltou quinta-feira passada a São Bento, onde esteve a contar a sua versão dos factos. Uma narrativa que o banqueiro começou a construir em Maio de 2014 e que tem mantido nos últimos meses, agora mais centrada nas setas atiradas a Carlos Costa e na falta de preparação de Passos Coelho para perceber o que se estava a passar. Dois dos depoimentos mais relevantes foram os de José Maria Ricciardi e do contabilista Machado da Cruz, que deram respostas claras e ambos serviram de contraponto à narrativa de Salgado.

O jogo do empurra e do “não me lembro” usado pelos accionistas do GES e por outros responsáveis tem marcado a CPI. Zeinal Bava, o presidente executivo da OI/PT, que sabia da aplicação da PT na Rioforte, desafiou mesmo a paciência dos deputados mantendo esta versão ao longo de várias horas. Já o outro presidente, Henrique Granadeiro, mais evoluído na arte da comunicação, assumiu culpas, mas piscou o olho para os dois lados do Parlamento afirmando a sua ética cristã e republicana. Com 10% da PT, o BES mandava na tesouraria da operadora que foi contaminada pela promiscuidade na relação.

Na última audição, Salgado introduziu ainda críticas ao momento escolhido para o Governo intervir no BES. Mas o banqueiro deu um sinal de que contínua sem perceber que fosse qual fosse a alternativa a família Espírito Santo já não tinha salvação. A 30 de Julho, o BES anunciava prejuízos de 3600 milhões e contabilizava imparidades de 4300 milhões. De repente passou-se de um aumento de capital vitorioso, saudado por BdP, Governo e Presidente da República, para o abismo. As autoridades atiram as responsabilidades para o BCE. Depois de a 16 de Julho ter validado o estatuto do BES como contraparte do eurosistema, essencial para a manutenção do banco em funções, 15 dias depois, a 1 de Agosto o BCE dava o dito por não dito. Ou o banco falia na praça ou o Governo intervinha. A versão oficial é que para possibilitar a entrada do Fundo de Resolução, o BCE estendeu o prazo até 4 de Agosto. 

História mal contada
Uma explicação que não convence o presidente do BPI. O que levou, em 24h, Mario Draghi a fechar a torneira da liquidez ao segundo maior banco português? “Causa alguma perplexidade porque é que o BCE terá sido tão violento com o BES e anda com os bancos gregos ao colo.” No seu depoimento escrito à CPI, o ex-secretário de Estado de Passos Coelho, Carlos Moedas, a quem Salgado pediu ajuda para salvar o GES (em Maio), dá a pista: “Na ocasião, depreendi que a situação poderia ser mais preocupante do que se supunha pelo que admiti que pudesse haver implicações para o processo de saída do programa em que Portugal se encontrava”. 

Carlos Costa liderou o processo da Resolução, mas tudo indica que esta foi uma escolha política, e que o governador pode ter-se deixado “encurralar” pelas Finanças. Em Agosto de 2014, em cima da “saída limpa”, com os juros da divida pública em queda, um colapso do BES ou uma intervenção pública que envolvesse entrada de fundos da troika poderia minar a estratégia do Governo.

A história está, por enquanto, mal contada e, neste capítulo, espera-se de Carlos Costa e de Maria de Luís Albuquerque argumentos convincentes. Até porque a ministra terá dificuldade em distanciar-se das críticas ao governador. Não houve ajudas públicas ao BES em 2013 (via linha de recapitalização ou com soluções mistas) e em 2014 também não. Porquê? Não quis o Governo criar ruído à volta da sua estratégia “de bom aluno” da troika? Que entidade definiu o momento e o modelo de intervenção? O BCE, o BdP ou o Governo? Dado que o Fundo de Resolução nunca foi ensaiado em mais nenhum país, Portugal foi colocado em situação de cobaia? Havia outra solução para evitar a liquidação do BES?

Passados oito meses, desde a intervenção (e divisão do BES em dois: Novo Banco e “banco mau”) o sistema financeiro ainda alega que não conhece as regras do Fundo de Resolução, de que são parte: quais os limites máximos de perdas (se a venda do Novo Banco correr mal); qual o calendário dos pagamentos. O que indicia que o Governo e o BdP gerem o dossier ao sabor dos acontecimentos, ajustando-o aos seus objectivos. 

Ao contrário de Passos Coelho e de Maria Luís Albuquerque, que têm feito a defesa do BdP (embora remetendo para o regulador todas as responsabilidades pelas decisões tomadas e pela informação prestada ao público), o vice-primeiro-ministro Paulo Portas foi ao Parlamento criticar Carlos Costa. Avançou que não foi informado antecipadamente da solução, mesmo sendo primeiro-ministro em exercício a 3 de Agosto de 2014, porque Passos estava de férias no dia em que o BES fechou as portas. 

Com estas três últimas audições abre-se o capítulo final do inquérito político aos factos que levaram à falência do GES  e à intervenção no segundo maior banco privado. A seguir caberá ao deputado-relator Pedro Saraiva, PSD, fazer o escrutínio de toda a informação que lhe chegou nos últimos quatro meses, e tirar conclusões. Estas podem apontar responsabilidades, mas devem ir mais longe: propor instrumentos legislativos que impeçam novos casos como este de se repetir.

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