Uma obra entre o terror e a beleza trágica

Herberto Helder construiu a sua obra como um poeta que atingiu um elevado grau de soberania e de consciência do seu "ofício cantante", ao qual ele atribuiu por vezes uma dimensão de magia. O lado demoníaco e de relação com os abismos concedeu à sua poesia um aspecto grandioso e inquietante.

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Pedro Cunha

Um percurso cronológico, tentando apreender e configurar a obra de Herberto Helder nos seus desenvolvimentos, desde o momento inaugural de O Amor em Visita (1958) até A Morte Sem Mestre (2014), esbarra com uma dificuldade: o poeta reviu, suprimiu, aglutinou e acabou até por apresentar a sua poesia numa continuidade sincrónica, numa “súmula” (que ele não quis que fosse uma antologia) a que deu o nome de Ou o Poema Contínuo.

É como se a sua obra (que, não podemos esquecer, compreende também dois livros em prosa: Passos em Volta e Photomaton & Vox) obedecesse mais a uma lógica do envolvimento do que do desenvolvimento. Por isso, ela acabou de certo modo por rasurar ou omitir as suas implicações com certas manifestações histórico-literárias, como é o caso da poesia concreta ou experimental e do surrealismo. Quando, em 1981, surge a Poesia Toda, num único volume, começa a ficar claro que a tendência, mais tarde acentuada, é para apagar etapas e cronologias, como se o poeta não escrevesse livros, mas poemas para um livro único, peças para um poema sempre em expansão. Talvez o último livro, A Morte Sem Mestre, publicado há um ano, seja aquele onde podemos encontrar alguma descontinuidade, uma mais difícil integração no “poema contínuo”.

Consciente de si, no mais alto grau, a poesia de Herberto Helder desde cedo reivindicou um carácter órfico e obscuro, que vem de uma região diferente do lirismo moderno. Ela estende a sua genealogia às vozes antigas, que provêm do fundo dos tempos (daí a relação com a poesia mágica e ritual que Herberto Helder “mudou” para português), sem deixar de ser eminentemente actual e em diálogo com a grande poesia do seu tempo.

“A poesia é um baptismo atónito”, diz o poeta algures, fazendo-nos perceber de onde nasce o seu “idioma demoníaco”. Há de facto um demonismo e uma temática demoníaca muito presentes e até explícitos nalguns poemas, como aquele em que se fala do inferno e se faz uma exortação: “Afastem de mim a inocência/ eu falo o idioma demoníaco”; ou outro, mais recente, em que se chega a esta formulação: “Vivemos demoniacamente toda a nossa inocência”.

Qualquer leitor de Herberto Helder sabe empiricamente a que corresponde este idioma demoníaco, mesmo que não tente analisá-lo conceptualmente: é a linguagem dotada de uma fúria, que tem o poder de “cantar”, mais do que “dizer”, e se afasta da linguagem imediatamente comunicativa. Esta poesia é, assim, um “ofício cantante”. Foi este o título escolhido para a primeira reunião de poemas, em 1967. Tal título, que será retomado numa nova reunião, em 2009, funciona como o princípio de uma poética: aquela que entende a poesia como ofício primordial - que salta por cima das histórias da literatura e vai mergulhar num infinito ligado às origens - e o poeta como oficiante.

Ela faz e instaura, mais do que exprime e representa, tem a ver com a dicção próxima das magias do canto e, em vez de representar, instaura. E por ser anti-representativa, anti-mimética, é que a poesia é “um baptismo atónito” e ganha a dimensão de hino.

Podemos relacionar o demonismo com uma idade heróica da literatura. Ele traz consigo o terror e o trágico. A relação da beleza com o terror, a beleza trágica, é uma relação tipicamente herbertiana e pressupõe a acção do mito. Devemos então perceber que a poesia de Herberto Helder nos obriga a trânsitos pouco comuns: entre o mito e a história, entre a magia e a ciência, entre o trágico e o mais baixo materialismo do corpo escatológico, entre o caos e a ordem mais imponente. Ela é uma das manifestações mais extremas daquilo que podemos designar como um anti-humanismo poético.

Esta força enorme teve um efeito: o chamado “efeito Herberto Helder”. Tal como Fernando Pessoa tinha sido o grande poeta forte, em relação ao qual todos aqueles que vieram a seguir tiveram de se situar, também Herberto Helder foi um poeta forte para muitos que vieram a seguir, um centro de atracção que provocou muito epigonismo.

Quando, em 1985, publicou a sua “antologia de vozes comunicantes da poesia moderna portuguesa”, intitulada Eloi Lelia Doura, percebeu-se melhor que se fixava nesse livro uma constelação de poetas que não seguia as cartografias canónicas. Herberto Helder foi muito parco nas manifestações públicas acerca dos poetas que vieram depois de si, mas teve a vontade de escolher e inventar a sua própria tradição.

Alguns poemas inéditos, em Ofício Cantante, acrescentados à secção que retoma  A Faca Não corta o Fogo, trouxeram uma nova marca ou, pelo menos, algo que nunca se tinha maifestado tão claramente: a violência reactiva. Aí, nalguns momentos, estamos próximos da invectiva, do grito de guerra, do recuo intempestivo, do niilismo. E estamos também perante uma fúria que introduz a obscenidade e o mundo reles da ordem político-quotidiana: “o ministério lírico, o mais grave e equívoco, o dom, não o tenho, espreito, leitor,/ por cima do ombro de outros (...)/ sei contudo de alguns dançando à beira do abismo,/ que tusa surreal!/ ou fodem murcho?/ a mim, que não creio em Deus, pátria ou família,/ em teorias gerais da linguagem,/ na vida eterna,/ na gramática,/ na foda estrita,/ em prática técnica nenhuma,/ na glória da língua,/ não há apoio de inserção que me valha,/ e os poemas talvez não passem porque há muitos cães que ladram”.  

Isto correspondia a algo relativamente novo, em Herberto Helder: não estamos aqui longe da lição nietzschiana do filosofar – neste caso, poetar – à martelada. Como Nietzsche, Herberto Helder sabe que não se aniquila Deus enquanto não se destruir a gramática. Não se trata já de um idioma demoníaco, mas catastrófico e intempestivo. Esta força impiedosa e virada para as contingências do envelhecimento e para a perspectiva da morte está bem patente no último livro, A Morte sem Mestre, que foi de facto um ponto extremo de chegada, onde já não se escuta a elevadíssima entoação órfica, mas a dimensão burlesca da carne e do corpo. Nada de metafísica, apenas física, e da mais obscena: o trabalho da morte seguiu o seu ritmo irreversível.

Esta escatologia tinha sido antecedida por manifestações de um desencanto histórico que tem a sua longa tradição, mas que Herberto Helder nunca tinha formulado em nenhuma das suas declinações. A grande questão hölderliniana do “para quê poetas, em tempos de indigência?” foi retomada desta maneira: “dados os termos dos tempos: à quoi bon aujourd’hui la poésie?/ ou então: la poésie comme l’amour/ antes ou depois: de quem, de quê, de como ou quando?”. Torna-se aqui evidente que a poesia de Herberto Helder, de uma maneira que nunca tinha comparecido antes, se ergue como uma consciência aguda do seu tempo e com um desafio aos seus desastres e indigências. Mais uma vez, mas agora de outra maneira, baixando a metafísica e o teor imagético-metafórico, Herberto Helder inquieta, aniquila, critica, solicita-nos para novos abismos que não podemos espreitar sem risco. Mas o trágico agora é outro e muito mais literal: é o da morte sem mestre.

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