Sabemos a pergunta mesmo sem saber qual é a melhor resposta

Queremos um mundo dominado pela China ou pelos Estados Unidos?

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1. Confissão prévia. É cada vez mais difícil a quem tem de escrever sobre a situação internacional fazê-lo sem correr um sério risco de se enganar. A razão é simples. O que era dado por adquirido deixou de o ser. Há muito mais actores internacionais a considerar. As coisas evoluem a uma velocidade tal que se corre o risco de ver desactualizados princípios e tendências que eram seguros na véspera. O problema é que este mundo em turbilhão surge precisamente quando a indefinição estratégica domina alguns grandes actores ocidentais, como os EUA ou a Europa. É a isto que chamamos desordem internacional.

Dito isto, uma notícia que quase passou desapercebido por cá mas que nos obriga a não virar a página. Pelo menos quatro grandes países europeus, Alemanha, França, Reino Unido e Itália, decidiram responder positivamente ao convite que lhes foi feito pela China para participar no capital de um novo banco de investimento (Banco de Investimento para as Infra-estruturas Asiáticas, AIIB na sigla inglesa). Desta vez, o Reino Unido tomou a dianteira, aceitando sem condições e sem levar em conta as advertências americanas. David Cameron tinha dito recentemente: “Nenhum país no mundo está mais aberto ao investimento chinês do que o Reino Unido.” A City de Londres “quer ser a maior plataforma bolsista para a moeda chinesa”, lembra Philippe Le Core da Brookings. E é já o maior destino europeu do investimento chinês. Uma fonte da Casa Branca acusou Londres pela sua “constante acomodação” à China. A verdade é que três dias depois, Alemanha, França e Itália anunciavam a sua adesão. O argumento é que, estando dentro, podem melhorar as regras adoptadas pela China para os seus investimentos. “Trabalharemos para que a instituição siga os melhores standards e práticas na sua governação”, dizem num comunicado. Os aliados dos americanos na região, nomeadamente o Japão, Coreia do Sul e Austrália, tinham rejeitado o convite chinês. Estão agora a reconsiderar, perante a entrada em força europeia. Para os Estados Unidos, a iniciativa chinesa visa enfraquecer a Parceria Transpacífica de Comércio que estão a negociar com 11 países da região (mas não com a China). Olham o banco como um desafio directo ao Banco Mundial. Têm alguma culpa no cartório porque as reformas já aprovadas para as instituições de Bretton Woods (sobretudo, o FMI) para acomodar as potências emergentes estão há anos à espera de ratificação do Congresso americano.

2. O Presidente Obama definiu a China como o mais importante desafio estratégico que os EUA têm de enfrentar nas próximas décadas. Foi, primeiro, o célebre G2, que deixou a Europa bastante arreliada e que Obama justificou dizendo que a relação entre a América e a China vai determinar a ordem internacional no século XXI. Depois, essa ideia perdeu alguma força. Pouca gente contesta esta prioridade americana, mesmo que possa criticar a forma como foi conduzida. Obama já mostrou por palavras e por actos que os EUA continuam a ser uma potência do Pacífico e que tencionam ficar por lá, incluindo para apoiar os países que rodeiam o gigante chinês e que têm tratados de defesa com a América. A estratégia de Obama para a China, que não difere muito da do seu antecessor, é pôr de pé ao mesmo tempo uma política de cooperação e uma política de contenção. O exercício não é fácil. Os países da região vivem um dilema muito difícil de equilibrar: dependem economicamente da China mas dependem dos EUA para a sua segurança. Uma eventual escolha seria uma tragédia. Hoje, é na Ásia que se regista a maior subida das despesas militares, com a China a liderar (nos últimos 10 anos o seu orçamento para a Defesa cresce sistematicamente 10 por cento). Obama tratou também de melhorar as suas relações com a Índia, o segundo gigante asiático que tem a vantagem de ser uma democracia, encontrando em Nova Deli uma atitude muito positiva. China e Índia não são os melhores amigos, como sabemos.

3. É aqui que a Europa entra. A União Europeia, sob proposta de Javier Solana, elaborou em 2003 um longo documento para uma “parceria estratégica” com a China. Do documento já ninguém se lembra. Mas continua a faltar à Europa uma estratégia comum para lidar com o gigante asiático, que seja compatível com a americana e que proteja os interesses europeus no médio prazo. Os tempos mudaram muito desde 2003. Hoje, o “peaceful rising” prometido por Pequim quando o seu primeiro objectivo era o crescimento económico, deu lugar a um “not so peaceful rising”. Americanos e europeus passaram os últimos anos a insistir que Pequim tinha de assumir maiores responsabilidades a nível internacional. É isso que hoje a China faz mas não da maneira que o Ocidente gostaria.

Há quase 10 anos, fui a Figo Maduro entrevistar o então “número dois” do Departamento de Estado americano, Robert Zoellick, na última escala de uma visita a 14 capitais europeias. Os líderes europeus preparavam-se para pôr fim ao embargo da venda de armas à China, imposto na sequência do massacre Tiananmen (1989). Ainda estavam abertas as feridas da crise iraquiana na relação transatlântica. Com a linguagem directa própria dos americanos (nessa altura a viver ainda o seu momento unipolar), Zoellick disse-me que os europeus tinham de pensar bem no que faziam. “Se chegarmos um dia a um ponto de grande tensão ou conflito, e espero que não, e a tecnologia europeia ajudar a matar soldados americanos, isso conduziria a uma recção muito negativa.” O levantamento do embargo tinha muitos apoiantes. A questão foi retirada da agenda. Hoje, como nessa altura, os Estados Unidos continuam a ser responsáveis pela segurança no Pacífico. Os europeus continuam a competir entre si para ganhar mercados e investimentos.

Está certa ou errada a decisão europeia de investir no novo banco chinês? A resposta não é fácil. Washington já moderou as suas críticas. Talvez porque tenha algumas culpas no cartório. As reformas já aprovadas das organizações de Bretton Woods (sobretudo, do FMI) para acomodar as potências emergentes estão no Congresso americano à espera de ratificação. Essa seria a melhor maneira de integrar a China, não lhe oferecendo um pretexto para querer ter o seu “Banco Mundial”. Quando o grande desafio que se coloca aos EUA (e à Europa) é integrar a China numa ordem mundial onde a influência ocidental continue a prevalecer, não é possível deixar tudo na mesma. François Godement, o especialista da China no European Council on Foreign Relations, levanta outra questão oportuna: porque é que os europeus se envolvem com um banco de investimento criado pela China e que dificilmente fugirá ao controlo da China, em vez de investirem no Fundo Juncker, com uma capacidade financeira muito limitada, para animar a economia europeia?

Os europeus têm também de tomar algumas decisões essenciais. A mais crucial para o seu futuro é levar a bom porto a negociação do TTIP (Parceria Transatlântica para o Comércio e o Investimento, o mais ambicioso acordo jamais negociado entre as duas maiores economias do mundo). É isso que a China também teme, apostando como sempre em tirar partido das divisões transatlânticas e europeias. Se esta parceria (que terá um impacto enorme no comércio internacional na medida em que assenta em standards e já não em quotas) falhar por causa do trigo transgénico ou da cedência à onda crescente dos populismos e do proteccionismo, aí sim as coisas podem correr mal. Mesmo que não seja uma ameaça directa à sua segurança, como é a Rússia, os europeus podiam aprender alguma coisa com o que hoje se passa na sua fronteira oriental.

As respostas não são fáceis nem são óbvias. Mas sabemos, pelo menos, qual é a pergunta: queremos um mundo dominado pela China ou pelos Estados Unidos?

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