Um mundo perdido

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“O berço baloiça sobre o abismo, e o senso comum diz-nos que a nossa existência não é mais que um breve espasmo de luz entre duas eternidades de escuridão.” 
Vladimir Nabokov

I. Uma viagem no vazio. A luz é uma parte tão grande do nosso dia-a-dia que já foi Deus, Conhecimento, Sol, Nascimento, Lâmpada, e o Caminho Certo. Presumivelmente, porque “vemos” com luz e porque a luz traz notícias do desconhecido, de onde nada existia. Assim, a escuridão é tão-somente o desconhecido.

Para um cientista, a luz é um fenómeno associado às vibrações de campos eléctricos e magnéticos, que viajam no vazio. São como ondas de água num lago, para as quais o lago não é necessário: elas criam-se a si próprias e transportam-se a partir do nada. Viajam à velocidade estonteante de 300 mil quilómetros por segundo. Somos criaturas de luz, sem a qual as moléculas do nosso corpo não se conseguiriam manter coesas. Por isso, e por o Sol desempenhar um papel tão importante para toda a Terra, evoluímos como boas antenas de luz: temos olhos especialmente sintonizados com a luz que são capazes de “ver”, de reagir a estas vibrações electromagnéticas.

II. Um horizonte eterno para a luz. É a luz que transporta a informação sobre o que eu escrevo neste momento, alguns dias antes da publicação deste artigo. A luz é passado: o que eu próprio leio neste ecrã de computador foi escrito há uma fracção de segundo atrás... Algumas estrelas que “vemos” a brilhar nos telescópios já morreram há muito tempo, mas a sua luz continua a viajar pelo universo fora. De alguma forma, as estrelas perduram nessa luz.

A luz aparentemente viaja em linha recta, provocando o aparecimento de horizontes, para lá dos quais não vemos nada. A Terra é curva, a luz de objectos muito distantes não “consegue” atingir-nos, ficam para lá do nosso horizonte. Se Faro está para lá do meu horizonte, é porque esta página aberta em Faro não é visível aqui em Lisboa, com os meus olhos. A razão é que a luz não cai o suficiente para viajar de Faro até aos meus olhos. Em circunstâncias normais, isto é, na ausência de prédios, montanhas, obstáculos, o horizonte visual de uma pessoa normal estende-se até cerca de cinco quilómetros. Este horizonte é temporário e fugaz: podemos sempre ir a Faro, ver e voltar.

Mas existem horizontes dos quais não podemos voltar. Este acto de escrita comprova que a luz é imprescindível. Mas existem recantos impossíveis de iluminar. Acredite-se ou não, a luz que o leitor está a ver, ao ler este texto, está a cair. Entre a página e o olho do leitor,  caiu cerca de 0,0000000000000001 metros (aproximadamente o tamanho de um electrão) desde que começou a sua viagem.

Que a luz cai como tudo o resto, foi observado pela primeira vez em São Tomé e Príncipe e no Brasil, em 1919, durante um eclipse. Nesse ano, vimos, realmente, a luz de estrelas a curvar-se ao passar ao pé do Sol, porque caía para o Sol. Enquanto estava perto do Sol, a luz caiu mais de um quilómetro. As observações coincidiram com as previsões de Einstein, que portanto se tornou ele próprio uma “estrela”, devido à queda da luz.

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Imagem deste artigo dentro de um buraco negro, quando visto de fora. Esta imagem é na realidade uma fotografia deste artigo num escuro quase absoluto Ana Sousa Carvalho

III. Os limites da luz. O quanto a luz cai depende do planeta onde está. Existem objectos tão compactos que a luz não consegue sequer sair do objecto. Por exemplo, se conseguíssemos esmagar o nosso Sol até ter o tamanho de uma aldeia (cerca de três quilómetros de raio), a luz à sua superfície cairia tanto que nunca chegaria até nós, e nunca poderíamos ver o Sol. Estes objectos chamam-se buracos negros por isso mesmo: não há luz que os ilumine, não têm cor. A sua fronteira é um horizonte de eventos por isso mesmo: é um horizonte eterno, imutável. Os buracos negros são o limite da luz. Esta página aberta dentro de um buraco negro está perdida de todos nós para todo o sempre. Tentar ver o que se passa para lá do horizonte de eventos é como tentar nadar contra a corrente de um rio mais forte que nós. A diferença é que esse rio é o tempo, que corre inexoravelmente para a frente. E o que está dentro do buraco negro é como um livro negro escrito a tinta preta.
 

Vítor Cardoso dedica-se à física teórica, nomeadamente à compreensão dos buracos negros, da matéria escura e das ondas gravitacionais

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