Supersilent:18 anos de liberdade

Quase duas décadas depois do seminal 1-3 os Supersilent continuam na sua demanda de fundir jazz, electrónica e o que mais houver. Não lhes chamem vanguarda, que eles não gostam. Chamem-lhes contemporâneos.

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Carsten Aniksdal

O procedimento é claro: as bandas compõem um disco, lançam um par de vídeos, planeiam uma digressão em que tocam os êxitos e algumas canções novas, dão entrevistas, e nisto passa-se um ano, depois tiram umas férias, voltam a compor, de modo que dois anos após o álbum anterior lançam o novo e o processo começa outra vez. Excepto com os Supersilent, que actuam esta sexta-feira, no Teatro Maria Matos, em Lisboa, às 22h.

A voz do outro lado da linha anuncia: “Nunca tocamos o disco.” Que, no caso, seria 12, que chegou às lojas o ano passado e ao qual a actual digressão supostamente corresponderia. Arve Henriksen – a voz que ouvimos ao telefone – prossegue: “Na realidade, nunca sequer ensaiamos. Tudo o que se ouve no palco é improvisação.” Isto seria o suficiente para assustar os mais conservadores, mas Henriksen põe um pouco de água na fervura (e fervura é um bom termo para definir a música deste combo norueguês): “É verdade que por vezes os sons que se ouvem nos concertos são próximos dos que foram registados em discos, mas isso é porque temos a nossa musicalidade bem definida. E para que não restem dúvidas, conclui: “Fazemos o teste de som, subimos ao palco e improvisamos. Nunca tentámos tocar a mesma canção na mesma sequência.”

É assim há 18 anos, quando Enriksen (trompete), Storløkken (teclas) e Vespestad (bateria) deram um concerto com Helge Sten. Os três primeiros vinham do jazz, Sten era um homem das electrónicas. A colisão dos universos deixou-os de tal modo encantados que de imediato seguiram para estúdio, ligaram o computador e improvisaram até coligirem material suficiente para um disco triplo, a que chamaram, imaginativamente, 1-3.

O impacto desse disco, lançado no início de 1998, não pode ser desmerecido: os pós-adolescentes dessa época haviam-se cansado de émulos de Nirvana e dos Blur, o r'n'b e o hip-hop ainda não tinham tomado as tabelas de vendas, e quem queria – digamos – algo diferente do que se ouve na maior parte das rádios encontrou em 1-3 um álbum inclassificável, que não era drum'n'bass, não era funk, não era apenas ruído, mas continha cada um destes elementos e ainda, como escreveu um crítico, num momento feliz, “uma máquina que pertencia a Giorgio Moroder e sofreu um curto-circuito”. Pesado, abrasivo, por vezes atmosférico, 1-3 não era um farol – era o próprio nevoeiro. O seu mistério residia em nunca resolver as pontas soltas.

“Para se fazer esta música”, explica Enriksen, “é preciso ser-se humilde”, e isto seria a última coisa que esperávamos ouvir. “Primeiro tens de ter de bom ouvido, depois tens de ter talento, seres mesmo músico. Por fim, tens de ser capaz de te ajustar a cada situação. O que temos de bom, o que nos fez durar tantos anos, é sermos capazes de ouvir os outros, saber quem tem de se chegar à frente e quando e perceber o momento em que apenas acompanhas os outros.”

Enriksen e Storløkken começaram a tocar juntos há cerca de 25 anos e desde então que o modus operandi do duo “se baseia em ouvir”. Ao contrário do que as descrições acima possam dar a entender, “nunca [quiseram] ser avant garde, ou outra daquelas denominações que legitimam música aborrecida”. Avant garde parece uma palavra de que Enriksen tem rancor. “Termos como esse, ou semelhantes, talvez façam sentido para tipos mais velhos. Mas os miúdos não ligam a essas coisas e ainda bem. Para mim o que fazemos é música contemporânea, porque é a música que se faz hoje e se ouve hoje.”

A fazer fé nas palavras de Enriksen, “da pop mais orelhuda à música clássica, passando pelo rock”, ouvem tudo e afiançam que “tudo isto se ouve” na sua música. “Não somos só jazz – ou, pelo menos, não somos jazz no sentido tradicional.” A ideia é dúbia: dificilmente se poderia caracterizar a discografia dos Supersilent como “clássica” e é certo que pop é que não é. Aliás, o desprezo dos rapazes pelas convenções da música popular é tanto que nunca se deram ao trabalho de nomear os discos: vão-os numerando, e é tudo – e não saíram por ordem numérica (a 8, um single, seguiu-se 11, por exemplo).

Com esforço conseguimos pôr Enriksen a situar a raiz desta música: “Só posso falar por mim, mas eu oiço na nossa música certos elementos vêm de alguns discos mais antigos, do que na década de 1970 se chamava 'rock' ou 'música de fusão'.” E com isto estamos plenamente de acordo, apesar de ouvi-lo garantir que “há muito dos Led Zepellin nos Supersilent” pareça esticar a corda – pese embora John Paul Jones, o baterista da seminal banda de blues-rock, ser um fã dos Supersilent e ter tocado com eles, o que lhes valeu, durante algum tempo, uma atenção inesperada.

“As pessoas ouviam falar no John Paul Jones e vinham ver-nos por causa dele – e odiavam, claro”, conta Enriksen, rindo-se. Por fim concede que a sua música está “mais próxima de discos como Bitches Brew [obra-prima de Miles Davis] ou da discografia dos Weather Report” do que da banda movida a riffs de Jimmy Page. "Mas não faz sentido nenhum estar a mencionar influências para a nossa música”, diz, no seu jeito rezingão, “porque nós trabalhamos com tecnologia muito avançada e fazemos muitos sons electrónicos extremados. Nenhum miúdo de hoje, ao ouvir-nos, pensa no Miles Davis.”

Talvez pense: esses foram os músicos que habituaram os melómanos a mais do que uma introdução, um verso, uma ponte e um refrão repetidos até ao máximo de três minutos e meio, foram os compositores para quem uma faixa só acabava quando nenhum dos músicos presentes na sala tivesse mais nada a acrescentar. Em Bitches Brew, descontente com os resultados das gravações (todas improvisadas), Davis cortou e colou as fitas magnéticas de cada instrumento até chegar à música que ouvia dentro da sua cabeça – antecipando em anos o sampling, num método que não está muito longe do que os Supersilent usam.

Com isto Enriksen está de acordo – ao ponto de dizer que “a improvisação”, para muitos uma forma snob de auto-indulgência musical, é “apenas uma maneira de compor”. “Nós podemos não fazer canções, mas não estamos contra a ideia de compor – simplesmente compomos no momento.” É relativamente simples o processo: “Juntamo-nos numa sala, tocamos dias seguidos, gravamos e depois ouvimos e uns gostam mais disto e outros gostam mais daquilo.” Aí o papel fundamental é de Helge Sten: “Ele mostra-nos tudo de modo a escolhermos a sequência de temas, decidirmos se devemos lançar o disco ou não. Quando tens dezenas de horas de música gravada e tens de escolher o material, tens opiniões diferentes. Mas confiamos sempre na capacidade do Helge [Sten] de montar os discos, ele encontra sempre a melhor maneira de juntar cada peça.” É ou não parecido com David em Bitches Brew?

Este é o momento em que devíamos dizer para não terem medo, o som dos Supersilent pode não ser comum, mas há toda uma linhagem para esta música. Enriksen até confessa que a música dos Supersilent “pode parecer complicada a muita gente mas [para a banda] é muito mais divertido do que pode parecer”. Ainda assim, tenham medo: por mais clara que seja a linhagem que leva aos Supersilent, esta música não deixa de ser incomum e imprevisível. É isso, aliás, que os mantém juntos: “No momento em que crias alguma coisa, não percebes o que fizeste. Mas por vezes afasto-me uns tempos dos Supersilent e acontece ouvir algo que gravámos e dou sempre por mim a pensar que não é nada mau. Toquei com muitos músicos ao longo dos anos e este foi o território mais livre que alguma vez encontrei.”

Não esperem outra coisa senão liberdade total a vir daquele palco. 

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