Nova Iorque, o caos afectivo

Nova Iorque pode ser um imenso território povoado por ex-namorados e amantes, para o embaraço e a culpa. No seu romance de estreia, Adelle Waldman constrói uma personagem que lhe serve para um livro tão íntimo quanto político sobre a solidão e a busca de afecto.

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Natural de Baltimore, Adelle Waldman chegou a Nova Iorque para ser empregada doméstica e escrever um livro Lou Rouse

No seu romance de estreia, Adelle Waldman criou uma personagem que tipifica uma certa maneira de viver em Nova Iorque nos tempos actuais. A Vida Amorosa de Nathaniel P., romance de costumes alicerçado na figura de um aspirante a escritor, foi publicado no verão de 2013 e pouco depois considerado um dos livros do ano por jornais como o New York Times ou o The Guardian, e Waldman viu-se referida como uma das estreias mais estimulantes na literatura norte-americana. No final de 2014, o romance tinha vendido mais de 40 mil exemplares na América e não demorou até que Nathaniel P. se tornasse quase independente da ficção onde se move e o seu nome passasse a ser usado como adjectivo que qualifica quem vive numa solidão mais do que ocasional, incapaz de ter uma relação estável; um intelectual ambicioso, por vezes uma “besta” com as mulheres, mas cheio de culpa por ter consciência disso. Alguém sempre a derrapar no seu próprio escrúpulo.

“Nathaniel Piven era um produto de uma infância pós-feminista dos anos oitenta e de uma educação universitária politicamente correcta dos anos noventa. Sabia bem o que era o privilégio masculino. Além disso, possuía uma consciência funcional e, francamente, bastante importuna.” É um dos habitantes frequentes do universo do dating, com tudo o que essa condição determina, alguém num “flirt incessante e implacável”, num “substrato de solidão e cinismo”, à procura de parceiros tão estimulantes sexual como intelectualmente, capazes de preencher um vazio comum a homens e mulheres. “Ele seria muito improvável, por exemplo, num romance de Philip Roth”, especula Adelle Waldman, 37 anos, natural de Baltimore, jornalista, crítica literária, freelancer e, como Nathaniel P. até há bem pouco tempo, à espera de publicar o seu primeiro romance.

Nas primeiras páginas do livro, Nate está a viver mais um confronto com aquilo a que chama o seu “egoísmo” e mais uma vez denota constrangimento face ao que esse comportamento desencadeia nos outros. Aceitar-se e ser aceite é o grande desafio. No metro, a caminho de um jantar com amigos em casa de uma ex-namorada, encontra Juliet, quatro anos mais velha, jornalista, com quem teve um caso que seria inconsequente não fosse ela ter ficado grávida. Ela decidiu abortar, ele, inconfessavelmente aliviado com a decisão, passou o serão com ela a ver um filme, telefonou-lhe no dia seguinte a perguntar como estava e seguiu com a sua rotina de escritor a viver de um adiantamento generoso para um livro, num bairro povoado de gente com semelhantes ambições de reconhecimento intelectual, até que a encontra naquela estação de metro.

O embate com a consciência de Nate serve a Adelle Waldman para escrever este livro, tão íntimo quanto político: o de uma geração educada na pós-revolução sexual americana, no pós-capitalismo desenfreado, na ideia de que a meritocracia é a forma mais democrática de promover o sucesso, na igualdade de género enquanto ideal social. Com Nate e companhia – homens e mulheres com uma educação privilegiada que gravitam à volta da literatura e da arte –, ela faz todas as perguntas, numa narrativa muito sustentada nos diálogos, com personagens que obedecem a vários tipos psicológicos e ideológicos, complexas, unidas pela necessidade de se revelarem únicas no seu trabalho, mas quase todas afectivamente descompensadas. “Não sei já se houve maior solidão do que a actual”, diz Waldman, segurando o copo de plástico cheio de café quente.

Chove. A conversa acontece com vista para a rua, através de uma vidraça embaciada. São poucos os carros que passam numa das avenidas mais centrais de Clinton Hill, bairro de prédios de dois ou três pisos, casas de pedra castanha e uma população de classe media que se mudou para ali a fugir dos preços de Manhattan, mas também já quase estrangulada pelo escalar das rendas que a sua mudança para Brooklyn motivou. “Um ciclo pernicioso”, conclui Waldman, que prefere, no entanto, viver ali do que “na Manhattan dos turistas e de ricos pouco estimulantes” que se tornou nos últimos anos.

Pequena, magra, olhos claros, Adelle Waldman podia confundir-se com um dos muitos universitários fixados nos ecrãs dos seus computadores portáteis que enchem aquele novo espaço numa das zonas mais fervilhantes de Brooklyn. Café, restaurante, ponto de encontro para conversas, lugar de escrita e criação. “Ainda não consigo entender muito bem o que me aconteceu com este romance”, continua numa voz pausada, cheia de hesitações, como se o nome que está na capa do livro que tem à frente não fosse o seu e isso não lhe tivesse mudado a vida, permitindo-lhe viver do que sempre quis: da escrita. “Passei anos com Nate e é como se só agora o estivesse o conhecer”, afirma, dias depois de ter publicado um artigo na New Yorker, uma reflexão sobre o estado actual do romance enquanto género literário, que era também uma resposta a quem questiona a “utilidade” e a “qualidade” do romance contemporâneo, considerando-o incapaz de se reinventar, alicerçado em “convenções obsoletas”. Para Waldman, mais do que questionar a forma – “pessoalmente, aí não estou interessada em experimentalismos", refere , a questão está em tentar perceber a função do romance e o que ele ainda faz bem: “escrever sobre a vida”.

Os exemplos
É isso que ela faz em A Vida Amorosa de Nathaniel P. “Os tempos são outros, mas inspirei-me muito nos livros de Jane Austen, no modo como consegue falar do que há de mais pessoal dentro do quotidiano mais banal." Em Austen, como em Evelyn Waugh ou em George Elliot, encontrou a génese literária desta vida amorosa que aqui retrata, e Middlemarch [romance que Elliot publicou em 1872] está mesmo no centro de uma conversa sobre igualdade de género liderada por Aurit, a amiga que nunca dormiu com Nathaniel, confidente que o confronta com o seu pior lado. Compara Nate e muitos dos homens que conhecia a Tertius Lydgate, personagem que quer deixar grande obra no mundo mas que se revela incapaz de fazer com que as suas ideias correspondam aos actos em muitos aspectos essenciais. “Aquela distinção de espírito que pertencia ao seu ardor intelectual não penetrava os seus sentimentos e opinião em relação à mobília e às mulheres.”

Era esse também o desacerto e o desconcerto de Nate, cuja essência está no facto de ter sido criado por uma mulher. É também aí que está a chave que faz funcionar este romance. “Estava a escrever este livro há muito tempo. Fiz muitas experiências, mas só consegui libertar-me quando a primeira pessoa passou a ser um homem. Antes, revia-me de mais na personagem, continha-me com receio da colagem autobiográfica. Via-me a fazer autocensura, a preocupar-me com a verosimilhança e ao mesmo tempo com medo de não descolar do real, da minha perspectiva. Por outro lado, não queria que o meu livro parecesse mais um daqueles livros olhados de lado: mais uma mulher a escrever sobre o universo feminino das emoções... É a tal história, um romance de emoções só parece ser respeitado literariamente quando é escrito por um homem, caso contrário é chamado literatura feminina. Nathaniel, como eu, é de Baltimore, também filho de imigrantes; veio para Nova Iorque depois da faculdade para escrever, como eu, e, como eu, vive em Brooklyn, onde não tanto como eu se movimenta uma certa intelectualidade muito preocupada com o tom, com a aceitação, porque essa aceitação social é quase é fundamental para pagar as contas. É muito caro viver aqui. Tudo isso gera códigos de comportamento que me interessava explorar, porque são experiências novas. A geração anterior teve uma vida muito diferente, passou-nos valores que agora parecem não se ajustar. Ao criar uma personagem masculina, tornei-me mais observadora do que interveniente, e isso deu-me uma maior clareza. E apesar de todas as semelhanças entre mim e Nathaniel, ele é homem e estudou em Harvard. Eu não. E isso faz toda a diferença no que se refere a expectativas e a círculos que se frequentam”, afirma Adelle Waldman, enquanto lembra uma das frases do livro: estudar numa universidade da Ivy League é pertencer à versão americana da aristocracia.

Nate era, nessa perspectiva, um aristocrata, alguém que pensava que ao chegar a Nova Iorque teria oportunidade de mostrar que era bom. Descobriu que era tudo muito mais sórdido. À sua maneira, Waldman descobria o mesmo. Depois de se formar na Universidade de Brown, foi para Nova Iorque escrever. Seria empregada doméstica e escreveria um romance, era o projecto. “Percebi que se não fizesse mais nada seria sempre empregada doméstica e nunca escreveria um romance.” Abandonou a coluna que escrevia no Wall Street Journal, deixou o apartamento em Manhattan e foi viver para casa dos pais. Em seis meses escreveu um livro que nunca publicou. Este levou anos. “Receava que acontecesse algo parecido, não arranjar editor. Queria fugir ao óbvio. Andam muitos escritores às voltas com estes temas, o que é natural. Eu queria salvar-me, não sei se me entende, mostrar que era capaz de fazer algo verdadeiro. Foi muito difícil. Reescrevi muito até chegar a esta versão.”

Aqui não há bons nem vilões. Nate não causa propriamente empatia, mas nunca será visto como um malvado. “Bom, às vezes…”, brinca Waldman. A sua errância é a de alguém que está permanentemente a justificar-se. O leitor está dentro da sua consciência e ouve a dos outros. Sobretudo a de Aurit, a melhor amiga de Nate. “Aurit não sou eu”, garante Adelle, embora também seja. Aurit é talvez mais forte de que Nate. Ouvimo-la através dele, é dele a perspectiva, mas Aurit irá contar a sua versão. “O editor achou que era bom explorar isso, ter a voz dela. Já escrevi uma espécie de continuação. Não é outro livro. É a vez do olhar de Aurit”, conta Waldman. E no romance é Aurit quem diz a Nate ainda que “o facto de a pessoa com mais poder numa relação recusar levar a sério a infelicidade da outra, simplesmente porque nada a obriga a isso, é a suprema sacanice”. Homem ou mulher.

A consciência
Nate sempre esteve em vantagem. Quando a sua relação com Hannah, a mulher que parecia a sua alma gémea intelectual, começou a degradar-se, ele agiu como um sacana, limpou a consciência com a ideia de que ela era livre para ir. “A minha intenção não é a de que Nate seja visto como um vilão. Ele, como nós, move-se nessa área cinzenta que me interessa explorar. A mesma que nos leva a ir ao Whole Foods [cadeia de supermercados de produtos biológicos] fazer compras porque isso nos faz sentir que já cumprimos um dever ético e podemos seguir em frente. Ou que simplesmente votar nos democratas faz de nós melhores pessoas. As relações amorosas não existem independentes de tudo o resto, do modo como somos socialmente, e são cada vez mais difíceis de conseguir porque a pressão é tremenda”, continua.

No começo do livro, assistimos ao exercício de Waldman para construir uma personagem complexa, capaz de ganhar simpatias e antipatias em escala quase paritária, para depois esse sentimento se assemelhar mais a um inquietante “podia ser eu”. Nate está à mesa, numa conversa em que a consciência é apresentada como “o luxo supremo” (“Pedimos a outras pessoas para fazerem coisas que somos demasiado sensíveis, moralmente para fazer nós próprios”); a vida normal das classes mais privilegiadas segue e a sordidez fica afastada. Ou, como refere outra vez Nate voltando ao exemplo do Whole Foods, “metade do que pagamos quando fazemos compras lá é o privilégio de nos sentirmos eticamente puros”.    

As questões de género, de raça, de exclusão social, de privilégio de classe atravessam a história sem que isso seja nuclear. Fala-se sobretudo de amor, quase sempre sem dizer a palavra, “porque ela cada vez se diz menos”, adianta Adelle Waldman, que desde que o livro saiu e está a fazer o seu percurso tem sido chamada a palestras e conferências sobre igualdade de género ou relações amorosas entre urbanistas ambiciosos. Ela sorri. “Eu não sou especialista. Posso falar unicamente do que observei, da pesquisa que fiz para escrever este livro, da atenção que dou ao que se passa à minha volta e na minha vida. Talvez seja por escrever sobre a realidade." E ver que isso serve para muita coisa que lhe escapa. Um senador republicano veio defender depois de saber do livro que as mulheres deviam preservar-se mais e ser mais recatadas para se defenderem de homens como Nate. “Como se ser crítico em relação a muitas das atitudes de Nate fosse uma questão partidária”, sorri outra vez, depois de já ter feito alguns comentários públicos sobre o tema.

Há também uma crítica tão mordaz quanto irónica ao universo literário nova-iorquino onde todos querem sacar um artigo positivo ao James Wood. Foi o caso? “Conseguir isso é ter portas abertas”, brinca. Refere-se à escrita como um exercício de vaidade irresistível que quase se sobrepõe a tudo na vida de quem quer ser escritor. “Talvez seja essa uma das grandes contradições: a escrita retira-nos da estabilidade dos afectos, mas estar nos afectos é uma tremenda ajuda quando se quer escrever um romance. Talvez na poesia seja diferente. Mas a energia que isso consome não deixa espaço para quase mais nada.”   

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