Lá onde o pai esteve este tempo todo

Esta também é uma história de terrores nocturnos, de fotografias a preto e branco, de refeições abandonadas a meio deixando no prato uma carnificina e do silêncio intransponível que se abriu como um abismo entre a geração que fez a Guerra Colonial e a geração que nasceu logo a seguir. O que é que o pai não te contou da guerra? estreia-se hoje no Porto.

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SUSANA NEVES

António Manuel Rodrigues Silva. João Gomes Ferreira Gonçalves. Francisco dos Santos Henriques. José Fernando Costa. Manuel Rodrigues Dias Martins. António Marques Pinto. António José Alves Fernandes. José Manuel Pereira Martins. Faustino Miranda Baldé. Andlate N’Djaló. Francisco Gomes. João Ferreira. Fernando Sousa Alves. Manuel Correia Marques. Zeferino Teixeira Lopes.

A lista podia continuar – e continua – até termos perante nós, encadeados pelas dezenas de reflectores amarelos que ocupam o chão do Teatro Carlos Alberto (TeCA), no Porto, não apenas estes 15 mas o milhão de rapazes com idades compreendidas entre os 18 e os 20 e poucos anos que o Estado português enviou rapidamente e em força para o Ultramar durante a interminável Guerra Colonial (1961-1974) em que esteve sempre a ganhar até finalmente assumir que tinha perdido (e com ela um belo império africano infinitamente maior do que a metrópole). Assim começa O que é que o pai não te contou da guerra?, a nova produção da Amarelo Silvestre, com texto de Fernando Giestas e encenação de Rogério de Carvalho, que fica no TeCA a partir de hoje e até dia 29 – numa longa noite iluminada por reflectores amarelos em que três adultos que nasceram do lado de cá vestem os casacos demasiado grandes dos pais que estiveram do lado de lá e sobreviveram para calar. E então falam eles: “O pai esteve lá. Aconteceu-lhe. O pai na guerra. O meu homem bom. Eu e o pai. Nós sabemos pouco. Sabemos a pouco.”

Ao longo de uma hora, o texto de Fernando Giestas comprime uma das mais fracturantes experiências da segunda metade do século XX português – e as 20 e tantas entrevistas a filhos de ex-combatentes que antecederam o processo de escrita – em flashes intermitentes que iluminam, no preto-e-branco desfocado dos álbuns dos anos 60 e 70, essas vidas tão interrompidas como os sonos passados, presentes e futuros dos terrores nocturnos, as refeições abandonadas a meio deixando no prato uma verdadeira carnificina, e o silêncio intransponível que se abriu como um abismo entre a geração que fez a Guerra Colonial e a geração que nasceu logo a seguir. Preto-e-branco: “O pai lá de pé, a mão no ombro de um homem, quatro de pé, três de cócoras, os cotovelos poisados no chão, camisa aberta, peito para fora, a pele branca do ombro nu, a mão de um na coxa de outro. A guerra está a chegar ao pai.” Preto-e-branco: “Uma criança preta ao lado do pai branco. O pai sorri, a criança não. O pai de pés calçados, a criança descalça.” Preto-e-branco: “Uma mulher preta alta, a mão do pai na mama dela, o braço dela na coxa despida do pai, ele não sorri, ela não sorri, ninguém sorri.”

Também foi assim, a guerra do pai: um país de cerveja fresca, mangas maduras, cheiro a quente, terra vermelha, homens brancos de cuecas com G3 encaixadas na anca. Ou então foi outra coisa, mais difícil de explicar: “Isto é guerra ou não é guerra? Isto é pai ou não é pai? Estas coisas são ou não são as coisas da guerra? Se isto não é a puta da guerra, então o que é a guerra, caralho? Se não foi na guerra, onde é que o pai esteve este tempo todo?”

Escavar
José Carneiro Duarte. Carlos Leão da Cunha Machado. José Manuel de Albuquerque Pinto Ferreira Alves dos Santos. Henrique Jorge Gomes Ferreira. Adulai Ferreira Baldé. Higino Manuel José Correia Ascensão. Carlos Antunes Pereira Filho. António José Carlos de Almeida. Carlos Rufino Assunção. Manuel Fernando. Joaquim. Manuel. Salomão. Augusto. Francisco.

A guerra foi lá, e cá também. “Olha para o teu prato, pai. Isso é um prato? Bocados de carne mal comida. Tudo mastigado. Tudo mutilado. Tudo esfarelado. Tudo pisado. Estilhaçado. Esmagado. Estropiado. Esquartejado. Esmigalhado. Empapado. Fodido. Ensanguentado. Carbonizado. Borrado. Esgaçado. Desfigurado. Descosido. Despido. Degolado. Desossado. Rasgado. Desmiolado. Está bom o silêncio, pai? Então, não queres mais nada? Uma fruta, uma fatia de bolo, um café?”

Fernando Giestas teve um pai desses – um pai da guerra. Não que este seja o pai dele: “Nada disto é autobiográfico, porque já ultrapassou essa linha, mas a verdade é que eu sou daqui, sou de hoje, e sou filho de um combatente de guerra. Esta peça parte da minha necessidade de perguntar, porque venho do jornalismo e sou do jornalismo ainda, que para mim é a disponibilidade para as perguntas todas”, explica ao Ípsilon. Enquanto crescia, teve perto dele esses álbuns de fotografias em que África era um país literalmente a preto-e-branco. “Isso povoou o meu imaginário e a minha relação com o meu pai, que é dominada pelo silêncio mas não só sobre a guerra. Queria ir para dentro da cabeça destas pessoas – que é um lugar estranho, que não dominamos, que faz curto-circuitos – mas não queria ir pela via das vítimas de stress pós-traumático, a perspectiva tratada pela [jornalista do PÚBLICO] Catarina Gomes no seu livro [Pai, Tiveste Medo?, Matéria-Prima Edições, 2014]. Interessava-me este lado da normalidade silenciada e silenciosa. De resto, nenhum dos cerca de 20 filhos de ex-combatentes que entrevistei teve um pai traumatizado de guerra”, sublinha. Entre estas duas gerações o silêncio impôs-se não apenas sobre esse como sobre outros assuntos: “Não há uma relação de diálogo, há uma relação de escuta. Talvez façamos uma outra pergunta para dar o contraponto, mas nunca é para escavar. Não se pergunta sobre a guerra, não se pergunta sobre o sexo, sobre o passado antes da mãe… O pai é aquela figura que lê o jornal enquanto a mãe põe a mesa; não se pergunta porque é que o pai não põe a mesa.”

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Nesse sentido, esta peça também uma forma de matar o pai, para uma geração que cresceu “à espera desse momento”, à espera de o apanhar “de costas para as perguntas” (“É como matar. É mais fácil matar sem ver”). Do lugar onde vive e trabalha, Canas de Senhorim, Fernando Giestas vê uma geração que parece finalmente “capaz” de matar o pai sem armaduras “antropológicas, históricas ou sociológicas”, fazendo as perguntas que ficaram por fazer sobre a ditadura, a colonização, a revolução e o retorno. Ao mesmo tempo, ressalva, esta não é só uma história sobre a Guerra Colonial – é uma história de pais e filhos em qualquer tempo, em qualquer lugar. Nisso, entregar o texto nas mãos de um encenador que nasceu em Angola e chegou a Portugal em 1954, Rogério de Carvalho (Gabela, 1936), foi decisivo: “É uma coincidência, mas mostrou-se muito interessante pormo-nos diante de uma pessoa que viveu os dois lados. O braço-de-ferro que tive com ele fez com que esta peça não deixasse ter raiz e de ser sobre a nossa Guerra Colonial mas ao mesmo tempo pudesse ter uma leitura universal.”

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