Este desenho pode guardar uma pintura perdida de Van der Weyden

Exposição do Prado sobre pintor flamengo recupera teoria que põe Van der Weyden a fazer um painel para o Mosteiro da Batalha.

Desenho de Domingos Sequeira mostrando a Virgem ladeada por dois doadores, os duques da Borgonha
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Desenho de Domingos Sequeira mostrando a Virgem ladeada por dois doadores, os duques da Borgonha Cortesia: Museu Nacional de Arte Antiga
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Santo franciscano atribuído a Nuno Gonçalves Cortesia: Museu Nacional de Arte Antiga
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O Calvário, de Rogier van der Weyden, do Mosteiro do Escorial acaba de ser restaurado Cortesia: Museu do Prado

Primeiro é preciso imaginar o Portugal das invasões francesas, uma viagem pelas estradas que separavam Lisboa da Batalha no Verão de 1808, um militar culto que viria a dirigir o Louvre e um artista viajado que sentia saudades de Roma. Onde andará a Virgem com o Menino que o pintor Domingos Sequeira mostrou ao conde de Forbin, militar ao serviço de Junot, quando visitavam o Mosteiro de Santa Maria da Vitória, na Batalha?

A pergunta parece inusitada mas justifica-se quando o Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) se prepara para emprestar a Madrid um álbum do artista português em que se pode ver o desenho de uma grande pintura da Virgem, ladeada por dois doadores, sendo um deles D. Isabel de Lencastre e Avis, duquesa da Borgonha e filha de D. João I, o rei a quem se deve o Mosteiro da Batalha. Não há certezas, mas é bem provável que a obra, hoje desaparecida, tenha sido feita por Rogier van der Weyden (c.1399-1464), um dos pintores protegidos pela infanta portuguesa casada com Filipe, o Bom, a pedido da própria Isabel, a quem a historiografia portuguesa tem dado pouca atenção, sobretudo quando comparada com os seus irmãos, os infantes daquela a que Camões chamou a ínclita geração (em especial o futuro rei D. Duarte, o Infante D. Henrique e D. Fernando, o príncipe mártir).

Sequeira desenha a obra porque muito provavelmente lhe reconhece qualidade, diz José Alberto Seabra Carvalho, historiador de arte e director adjunto do MNAA, mas, à excepção das dimensões – tem o cuidado de apontar as medidas, quatro palmos e meio por oito, qualquer coisa como 1X2 metros – e do local (no canto inferior esquerdo escreve “Na Batalha”), não deixa referências.

“É um desenho até pouco pormenorizado, se o compararmos com outros deste álbum que Sequeira usa de forma descontínua", referindo-se ao facto do álbum guardar desenhos feitos durante a primeira estadia em Roma do pintor e cá em Portugal. "Mas é um documento importante na construção desta teoria - que é só uma teoria, é preciso sublinhar - de que a capela do fundador já teve um Van der Weyden”, acrescenta.

Ao serviço do poder
O álbum de Domingos Sequeira (1768-1837), que vem da colecção real do Palácio das Necessidades e está em no Museu de Arte Antiga desde o início do século XX, vai agora integrar a exposição que o Museu do Prado, uma das pinacotecas mais importantes do mundo, vai dedicar a este artista flamengo (24 de Março a 28 de Junho), ao lado de outra obra também cedida pelo MNAA – o retrato de um santo franciscano atribuído a Nuno Gonçalves, o mestre dos Painéis de S. Vicente. Foi pedido pelo comissário da exposição madrilena, Lorne Campbell, talvez pelo facto deste curador da National Gallery de Londres acreditar que Sequeira e Forbin estiveram mesmo diante de um grande painel de Van der Weyden hoje desaparecido.

“Há uma espécie de lenda que diz que o próprio Sequeira terá mostrado a Batalha ao conde de Forbin para que ele levasse a pintura para Paris, isto porque havia quem defendesse - e ele foi preso por isso - que apoiava os franceses. Mas não passa de uma lenda. Todas as pessoas cultas que visitavam Portugal no século XIX sabiam que tinham de ver a Batalha”, explica Seabra Carvalho, acrescentando que o artista nomeado pintor da corte em 1802 gostava de estar do lado de quem mandava, fosse quem fosse. Não eram as ideologias que o faziam aceitar encomendas de Junot, general francês que comanda as tropas na primeira invasão francesa, em 1807, eram as rendas. "Ele põe sempre que pode o seu génio – e não há dúvida de que o tem – ao serviço do poder.”  

No mesmo álbum de Sequeira encontram-se paisagens das Caldas da Rainha e da Nazaré; vistas do castelo de Alcobaça, hoje reduzido a metade, e do Palácio Nacional de Sintra; os túmulos de Pedro e Inês; armas e peças de ourivesaria da Batalha; e até um detalhado registo da Sopa dos Pobres, em Arroios, onde acorriam muitas pessoas dos arredores de Lisboa, fugidas às tropas francesas, muito semelhante à sua famosa gravura.

“Não sabemos praticamente nada sobre este painel perdido que o desenho de Domingos Sequeira testemunha, mas podemos sublinhar algumas coincidências, como o facto de, nesta altura, o pintor da corte dos duques da Borgonha ser Van der Weyden.” Entre estas “coincidências” está o facto de D. João I ser quem manda construir o mosteiro e de nele haver uma capela que lhe é dedicada. É neste espaço, onde o rei e a sua mulher, Filipa de Lencastre, estão sepultados (a jazente do túmulo mostra o casal de mão dada), que Seabra Carvalho acredita que a pintura desenhada poderá ter estado pendurada.

“É natural que a filha de D. João e D. Filipa quisesse estar presente na capela que se transformou no panteão da família. E sendo Van der Weyden um dos seus protegidos, como Jan Van Eyck (1390/1400-1441) e Petrus Christus (c.1410/20-c.1475/76), também é natural que fosse ele o autor. Mas não sabemos ao certo, é só uma hipótese.” Uma hipótese que se torna verosímil quando se atende na composição - “triangular, perfeita” - e se repara na forma como Isabel é representada, com um colar e um toucado semelhantes aos que se encontram noutro retrato da duquesa (c. 1450) da oficina de Van der Weyden, feito a partir de um original do artista hoje perdido, e que desde 1978 faz parte do acervo do Museu J. P. Getty, de Los Angeles, tendo já passado por grandes colecções, como a dos Rothschild e a dos Rockefeller.

Princesa esquecida
Algumas das grandes obras de altar que Van der Weyden criou para os seus clientes estão hoje perdidas, pode ler-se em algumas das biografias do pintor, e, por isso, não é de estranhar que também a da Batalha possa pertencer-lhe. “É plausível que este seja o desenho de uma obra de Van der Weyden que já não existe, mas não podemos afirmá-lo sem reservas. O que sabemos é que em 1808 a pintura estava lá e que em 1823, quando é feito o inventário da Batalha, já não constava obra alguma que se possa identificar com a que Sequeira desenha." Um inventário feito durante o processo que leva à extinção das ordens religiosas, em 1834, que compila na década de 1820 o património dos mosteiros e conventos. "Agora se foi Forbin ou outro que a levou, se foi destruída por algum motivo ou se o inventário está simplesmente mal feito, não sabemos.”

Seabra Carvalho não acredita que tenha sido levada pelos franceses porque em Portugal, ao contrário do que se passou em Espanha, o saque das invasões limitou-se às peças em ouro e prata usadas na liturgia (a Custódia de Belém chegou a ir, recorda, mas foi depois devolvida). Além de que, acrescenta, a pintura em causa é grande, o que dificultava o transporte. Ainda assim, e sendo o painel de um importante artista flamengo, não justificaria o esforço? “Na altura os flamengos não eram assim tão considerados”, defende o historiador, lembrando que a sua pintura só começou a ser valorizada na década de 1830, quando a obra de Hans Memling (c. 1430-1494) se tornou conhecida, “curiosamente graças às pinturas expostas no Museu do Louvre”.

Para Seabra Carvalho, o mais provável é que a obra da Batalha tenha sido destruída: “Não ponho de parte que os franceses a tenham levado, mas se assim fosse, em mais de 200 anos ela já teria aparecido no mercado ou pendurada num museu qualquer. As que Junot e [Nicolas Jean-de-Dieu] Soult saqueiam em Sevilha são vendidas logo em seguida para fazer dinheiro.”

A exposição do Museu do Prado, que tem como ponto de partida o restauro d'O Calvário do Mosteiro do Escorial, de Van der Weyden, vai pôr lado a lado obras que estão dispersas por várias colecções, centrando-se na fortíssima ligação que existe entre pintura e escultura na produção deste flamengo que influenciou profundamente outros artistas.

“Van der Weyden distingue-se pelo trabalho de pormenor e pelo absoluto domínio técnico na tradução da natureza das coisas dando-nos a ideia, como Van Eyck, de que a pintura consegue ser mais convincente do que a própria realidade”, diz o historiador de arte.

No meio da pintura, haverá o álbum de desenho de Domingos Sequeira a trazer à memória Isabel da Borgonha (1397-1471), uma infanta portuguesa que foi rainha sem o ser – depois da morte da mãe substituiu-a em todos os assuntos do reino até casar, quando já passava dos 30 anos –, mulher politicamente influente e mecenas atenta. Sem o saber, o artista português não guardou apenas o único registo que se conhece de uma pintura perdida – guardou também uma princesa que a história de Portugal quase esqueceu.

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