Chile quer voltar a ser um oásis de anticorrupção na América Latina

Opinião pública surpreendida e chocada por sucessão de escândalos que comprometem políticos e empresários e até o filho da Presidente, Michele Bachelet.

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A taxa de popularidade de Bachelet caiu para os 39% CLAUDIO CRUZ/AFP

Pressionada pela sucessão de escândalos que está a manchar a imagem do Chile como uma espécie de oásis impoluto no panorama latino-americano, a Presidente, Michelle Bachelet, acaba de nomear um conselho anticorrupção com competências para estabelecer as regras da convivência saudável entre os diferentes poderes e instituições, nomeadamente através da revisão das leis sobre o conflito de interesses ou o tráfico de influências.

A iniciativa presidencial, a reboque dos acontecimentos, pretende salvar o que resta da reputação do Chile, que nos índices anuais da Transparência Internacional, que mede a percepção da corrupção pelas populações dos respectivos países, aparece com uma “pontuação” de 73 em 100 – um confortável 21.º lugar no ranking de 175 países. “[Mas] os casos que vimos conhecendo nos últimos tempos, no âmbito dos negócios, da política e da relação entre ambos, provocaram uma preocupação e sobretudo um mal-estar entre os cidadãos”, reconheceu Bachelet.

A surpresa começou no princípio do ano, quando o agora chamado "caso Penta" ou "Pentagate" veio a público: uma intrincada trama que envolve alguns dos mais conhecidos empresários e políticos chilenos que caiu como uma bomba junto da opinião pública chilena, forçada a reconhecer que afinal a situação não é assim tão diferente da dos países vizinhos – Argentina ou Brasil, onde grandes esquemas de financiamento partidário ilegal e de corrupção convivem com os pequenos casos de “luvas” e outras “propinas” da vida quotidiana.

A investigação foi desencadeada por mensagens anónimas enviadas directamente para a autoridade tributária chilena: documentação que alegadamente comprovava a alteração das declarações fiscais de poderosos grupos económicos e empresários, num esquema de evasão que teria defraudado o Estado em mais de 3,5 milhões de euros e era alimentado por inspectores dos impostos em troca de comissões generosas. A denúncia identificava um auditor, que teria falsificado as declarações de 122 pessoas.

Aberto o inquérito, constatou-se que um dos beneficiários do esquema era Hugo Bravo, o antigo presidente do grupo Penta, uma das maiores holdings do país com negócios financeiros, imobiliários, na saúde e educação, entre outros. Chamado a depor, Bravo revelou que o “arranjo” servia para evadir o fisco, mas também para canalizar verbas para a campanha da União Democrática Independente (UDI), que integra a grande coligação de direita chilena que governou o país entre 2010 e 2014 e ainda é o partido com mais assentos no Congresso.

O escândalo levou a UDI quase à implosão: o presidente do partido, Ernesto Silva, demitiu-se do cargo. Outros políticos, antigos ministros e figuras de proa do partido, referidos como tendo recebido verbas irregulares, também se afastaram – o ex-ministro Laurence Golborne; o putativo candidato presidencial Andrés Velasco; Ena von Baer, a porta-voz do ex-Presidente Sebastián Pinera, implicados pessoalmente por Bravo.

Os dois proprietários do grupo Penta, Carlos Délano e Carlos Lavín, e outros quatro indivíduos, entre os quais um ex-ministro, um senador e auditor do fisco, foram entretanto detidos e acusados dos crimes de evasão fiscal, suborno, corrupção e financiamento ilegal. A procuradoria admite acusar outras oito pessoas por branqueamento de capitais e corrupção.

Logo depois, o país soube do caso Caval, mais conhecido como "Nueragate", e que tem o picante especial de incluir o filho da Presidente, Sebastián Dávalos, e a nora, Natalia Compagnon, na lista de suspeitos de tráfico de influências e favorecimento. Em causa está um empréstimo de mais de dez milhões de dólares (9,45 milhões de euros) concedido pelo Banco do Chile a uma pequena empresa imobiliária chamada Caval, da qual Compagnon é co-proprietária. O dinheiro, que foi usado para a compra de lotes de terrenos mais tarde vendidos com um lucro de 4,5 milhões de euros, foi emprestado em Novembro de 2013 na sequência de uma reunião em que estiveram presentes o vice-presidente do banco (e um dos homens mais ricos do Chile), Andrónico Luksic, e o filho de Bachelet – que nesse mês viria a conquistar nas urnas um segundo mandato presidencial, com um programa reformista que prometia o combate às desigualdades sociais e o fim dos privilégios da elite chilena.

O caso, exposto pela revista Qué Pasa, está a ser investigado pelo Ministério Público. Sebastián Dávalos negou ter-se aproveitado da posição da mãe e viu o seu nome ilibado numa averiguação do supervisor da banca. Mesmo assim, o filho da Presidente reconheceu que as notícias sobre o empréstimo tinham uma nuvem de suspeição que prejudicava o trabalho do Governo e a imagem da Presidente e resignou ao cargo de assessor presidencial.

Dávalos era tratado informalmente por “primeiro-damo” por assegurar a direcção da fundação de promoção de causas sociais e culturais que está ligada aos serviços da presidência, uma tarefa tradicionalmente exercida pelas mulheres dos presidentes. Bachelet disse só ter sabido do empréstimo à nora pela imprensa. “Para mim, como mãe e Presidente, estes momentos têm sido muito dolorosos”, admitiu.

A opinião pública chilena reagiu imediatamente à divulgação dos escândalos que apontam para o conluio de responsáveis políticos e dirigentes económicos. “O impacto reflectiu-se imediatamente nas sondagens. O efeito no sistema político foi bastante profundo”, observou à BBC Mundo o presidente da empresa de sondagens Adimark, Roberto Méndez. A taxa de popularidade de Bachelet, que era de 54% no início do mandato, caiu para os 39% em Fevereiro.

Analistas políticos dizem que a margem de manobra da Presidente para levar a cabo a sua agenda de reformas ficou seriamente comprometida, uma vez que os casos que afectam tanto a aliança de direita como a plataforma de centro-esquerda de Bachelet vieram mexer no equilíbrio de forças no Congresso, onde os Democratas Cristãos ganharam influência e passaram a ter o voto decisivo.

“No ano passado, Bachelet conseguiu a aprovação, sem grandes problemas, de todos os projectos que enviou ao Congresso. Mas este ano pode ser diferente. O escândalo com o filho foi um balde de água fria e é preciso ver se não se vai tornar um problema incómodo – por exemplo, como o escândalo da Petrobras se tornou para a Presidente [brasileira] Dilma Rousseff”, declarou o professor de Ciência Política e antigo candidato presidencial Ricardo Israel à BBC Brasil.

Antes de iniciar o combate político para a aprovação de uma segunda etapa da reforma do sistema de ensino e de um novo pacote de legislação laboral, Michelle Bachelet deu conta do seu interesse em discutir uma emenda constitucional que possibilite a destituição de todos os eleitos que tenham acedido ao cargo através de financiamento ilícito.

“O maior risco para o país é que os chilenos percam a sua confiança nas instituições”, disse a Presidente numa entrevista à Bloomberg para assinalar o primeiro aniversário da sua tomada de posse, a 11 de Março. “A estabilidade só é possível com coesão social, quando toda a gente sente que tem uma oportunidade”, afirmou, em defesa das suas políticas. “Mas também implica responsabilidade: de cumprir as promessas eleitorais, de falar e ouvir as pessoas, de transparência e honestidade”, acrescentou.

O conselho anticorrupção lançado pela Presidente é formado por 16 especialistas “independentes”, e presidido por Eduardo Engel, um conceituado economista e académico. Muitos dos membros têm ligações à universidade, outros são advogados, consultores, membros de centros de estudos ou fundações que lidam com políticas públicas, transparência, direitos humanos ou apoio ao desenvolvimento e combate à pobreza. Michelle Bachelet informou que o grupo trabalhará no palácio presidencial de La Moneda, mas “com total autonomia” e que as suas propostas para um novo regime de incompatibilidades serão apresentadas num prazo de 45 dias.

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