Sexo, mentiras e espionagem

Como o FBI transformou um professor num espião.

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Dajin Peng estava a fazer uma pesquisa na Internet sobre a melhor forma de se suicidar quando Dianne Mercurio lhe bateu à porta. A agente do FBI tinha outros planos para ele. Mercurio sabia que Peng estava em apuros com a Universidade do Sul da Florida (USF), onde ensinava Comércio Internacional e dirigia o Instituto Confúcio, um programa cultural fundado pelo Governo chinês. A USF tinha-o suspendido por alegada má gestão. Enquanto passeavam à volta do apartamento, Mercurio pediu a Peng, cidadão americano nascido na China, que prestasse um serviço ao seu país de adopção.

O encontro, em Abril de 2009, foi o início do recrutamento de Peng. Pouco depois, Mercurio pressionava-o para espiar a sua terra natal e a comunidade chinesa de Tampa [na Florida]. Ele aceitou, mas com relutância, diria depois nas entrevistas. Em troca, seria protegido da acusação feita pela universidade de que tinha forjado despesas de milhares de dólares, falsificado cartas para ajudar académicos chineses a conseguir vistos dos EUA e guardado imagens de teor sexual sado-masoquista num computador da USF. Acusações que Peng negou.

“Lembre-se de que eu estou a ajudá-lo a não ir parar à cadeia”, escreveu-lhe Mercurio em Julho de 2010. “E a liberdade não tem preço.”

Ninguém conhecia melhor o preço da liberdade do que Peng, que mais uma vez se viu arrastado nas poderosas correntes da política e da espionagem, décadas depois de a sua infância ter sido estilhaçada pelos informadores de Mao.

A sua história — da China para a Universidade de Princeton, dali para Tampa — mostra o quanto o Governo americano tem estado preocupado com o crescente envolvimento chinês nas instituições de ensino superior nos Estados Unidos, especialmente através das actividades dos institutos Confúcio. E também reflecte o aumento de outra influência indesejável nas universidades americanas — o das agências de informação, que pretendem assim controlar um número cada vez maior de alunos e professores estrangeiros.

“Há uma tensão real entre o que o FBI e a CIA querem fazer e a nossa abertura internacional, válida e necessária”, afirmou o presidente da Rice University, David Leebron, membro do Conselho Nacional de Segurança para o Ensino Superior, um organismo criado em 2005 para permitir o diálogo entre as agências de serviços secretos e os responsáveis académicos. “Mas não queremos acordar um dia e descobrir que há pessoas nas faculdades a roubar segredos comerciais ou pondo o nosso país em perigo”, observou, sem se referir especificamente ao caso de Peng. “Podemos ser uns tipos um bocado desconfiados, mas temos de encontrar um entendimento.”

Fluente em chinês e japonês, Peng, de 47 anos, diz ter ligações aos mais altos serviços de informação da China. Viaja frequentemente para a sua terra natal, onde desempenha vários cargos de ensino. Detectando o seu valor para os serviços de espionagem, Mercurio chegou a alarmar a direcção da USF ao sugerir que a universidade deveria considerar abrir um pólo na China, que seria usado como base para a espionagem de Peng para o FBI, adiantou o próprio.

Dez universidades americanas criaram já sucursais na China, apesar dos receios de alguns professores de os debates políticos serem ali controlados. Entretanto, o número de estudantes chineses nas faculdades americanas aumentou: são cerca de 275 mil alunos, sete vezes mais do que há duas décadas. Os dados oficiais mostram que em 2010 trabalhavam nas universidades americanas 150 mil cientistas, cientistas sociais e engenheiros de naturalidade chinesa, 47% mais do que em 2003.

“Obviamente que temos um grande número de professores e alunos estrangeiros que vêm para o nosso país com alguma informação que lhes pode ser cuidadosamente arrancada”, comentou Steven Ibison, um agente especial que estava encarregado da delegação de Tampa durante o período em que Peng foi assediado. “Não seria inédito se alguns destes tipos andassem a recolher informações sobre nós.”

Ibison diz que não se lembra do caso de Peng. Mercurio recusou-se a comentar, tal como o porta-voz do gabinete de Tampa e as delegações nacionais. A Universidade do Sul da Florida afirma ter agido correctamente em relação a este caso e nega ter sido influenciada pelo FBI.

Peng, professor associado, está actualmente na sua segunda suspensão da USF. Durante dez horas de entrevistas, acusou o FBI de ter destruído a sua carreira. Diz que a agência instigou funcionários insatisfeitos do Instituto Confúcio a lançar as suspeitas sobre ele e obrigou-o a espiar para manter o emprego. “O FBI esteve envolvido mas toda a gente finge que não”, afirma.

Não foi fácil marcar um encontro com ele. “Como estou suspenso, não posso usar o meu gabinete”, disse por email. “Não acho que seja boa ideia encontrarmo-nos no meu apartamento porque temo que esteja sob escuta. E por isso também não é boa ideia fazermos uma reserva num restaurante.”

Em vez disso, sugeriu um encontro num parque de estacionamento de uma drogaria. Uma vez ali, saiu do seu Toyota Sienna para o carro alugado do jornalista. Foi dando as indicações para o restaurante chinês de uns amigos, onde foi conduzido para uma sala nos fundos, de porta fechada. A empregada tinha de bater de cada vez que entrava.

Os olhos estavam vermelhos e inchados, talvez do stress ou do jet lag. Acabara de chegar de Pequim, com passagem pelo Dubai e Cidade do Cabo, depois de umas férias com o seu pai viúvo, de 89 anos. Divorciado, com dois filhos em universidades de elite americanas, Peng despejou a sua história num inglês fluente, apesar de ocasionalmente confundir “dela” com “dele”.

Dez dias depois de nascer, em 1958, a mãe viu-se obrigada a salvar o emprego de administrativa num liceu divorciando-se do seu pai, que tinha sido enviado para um campo de trabalho por ter criticado o Governo. O bebé recebeu o apelido materno, Peng, e como primeiro nome Dajin, que significa “Grande salto em frente”, uma homenagem politicamente correcta ao desastroso programa de industrialização que Mao Tsetung tinha introduzido nesse ano.

Quando o pai foi libertado do campo, Peng e a mãe iam visitá-lo, por vezes em segredo, mesmo depois de as autoridades a terem repreendido por isso. Em 1978, Deng Xiaoping liberalizou a China e os pais voltaram a casar. Acabaram por se juntar a Peng nos Estados Unidos.

A mãe morreu em 2004. O pai, que se tornou cidadão americano, seria morto em Dezembro passado, quando um carro o atropelou perto do campus da USF. Na sua elegia fúnebre, Peng afirmou que o pai lhe tinha passado o gosto pela política internacional — e a capacidade de aguentar a pressão.

Peng licenciou-se na Universidade de Wuhan e juntou-se ao que um amigo da faculdade chamou “universidade de espionagem chinesa”, o Instituto de Relações Internacionais em Pequim. A escola é gerida pelo Ministério da Segurança do Estado e treina muitos agentes secretos, segundo a Stratfor, empresa de consultoria de segurança nacional americana. Peng escolheu o instituto pela sua qualidade académica e não se tornou espião, adiantou. O vice-director do programa Investigação Americana, o departamento a que Peng pertencia no instituto de Pequim, era Geng Huichang, que agora é o ministro chinês da Segurança do Estado. Peng trabalhou durante um curto período para um instituto de investigação gerido por aquele ministério e depois partiu para os Estados Unidos, onde tirou outro mestrado na Universidade de Akron e um doutoramento na Woodrow Wilson School of Public and International Affairs, em Princeton.

O FBI controlava os alunos saídos do Instituto de Relações Internacionais e interpelou Peng em Akron. Em Princeton, Peng conheceu Nicholas Abaid, do gabinete do FBI em Trenton. Através de contactos em Princeton, eram identificados os estudantes que se poderiam tornar informadores prestáveis e estabeleciam-se relações com eles, adianta Abaid. Os dois almoçavam várias vezes juntos e falavam sempre que Peng estava prestes a ir à China.

Mais tarde, Mercurio ligaria a Abaid para lhe fazer perguntas sobre Peng. Ela “estava a entrar no campo chinês”, afirmou o agente, agora reformado. E adiantou que foram poucas as informações que extraiu de Peng.

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Dajin Peng, ex-professor da Universidade do Sul da Florida, num parque próximo do campus, em Tampa. O FBI começou a recrutar Peng em 2009 Phelan M. Ebenhack

Quando Abaid lhe pediu que se mantivesse em contacto com o FBI em Tampa, Peng recusou delicadamente, esperando com isso não voltar a ver os agentes de informação, afirmou.

Trocara Princeton por uma promissora escola estatal com palmeiras em vez de hera. Fundada em 1956, a USF tem 48.400 alunos espalhados por três pólos, 3300 dos quais são estrangeiros. Orgulha-se da investigação e do empreendedorismo e esteve entre as 15 universidades com mais patentes atribuídas pelos EUA entre 2010 e 2013.

É também um dos 20 estabelecimentos de ensino reconhecidos pelo Governo como Intelligence Community Centers of Academic Excellence [centros de serviços de informação criados com algumas universidades]. A USF recebeu 1,5 milhões de dólares para treinar alunos em serviços de informações nacionais e colocar 40 estagiários com habilitações em segurança no Departamento de Estado e na Defense Intelligence Agency, adianta Walter Andrusyzyn, que dirige o programa da universidade.

A USF fez uma “transição saudável de uma universidade que era antimilitarista, anti-serviços de informação, para uma que deseja parcerias”, acrescenta Andrusyzyn, que trabalhou para o Departamento de Estado e fez parte do Conselho Nacional de Segurança da Casa Branca.

Mas Dianne Mercurio pôs à prova essa parceria.

Mercurio cresceu em Mauldin, no Sul da Califórnia, onde, durante o liceu, fazia parte das equipas de corta-mato, basquetebol e atletismo, vencendo um campeonato estadual dos 800 metros. Tirou o curso de Psicologia na Universidade da Carolina do Norte, licenciando-se em 1990. Delmer Howell, o professor de Atletismo do liceu, diz que não ficou surpreendido quando ela se tornou agente do FBI. “Tem o tipo de inteligência e perseverança que eles procuram”, declarou.

Enquanto Mercurio construía a sua carreira no FBI, Peng tornava-se cidadão americano e ganhava terreno na USF. Dava cursos sobre comércio japonês, relações sino-americanas, e outros tópicos, e ganhou um prémio de mérito como professor. Engordava o seu salário da USF com aulas a estudantes de Gestão na China, tendo começado na Universidade de Nankai, em 2005. Impressionava os alunos dos dois Estados a referir a população de qualquer país que eles nomeassem.

Através das suas ligações na China, Peng ajudou a USF a estabelecer o primeiro Instituto Confúcio na Florida, com Nankai como parceira. Os cerca de 450 institutos Confúcio espalhados pelo mundo (nos EUA, são mais de 90) são geridos pela Hanban, afiliada do Ministério chinês da Educação, e cada um tem uma escola parceira na China.

Um instrumento de soft power — tal como o então Presidente Hu Jintao os descreveu num discurso em 2007 —, os institutos, baptizados com o nome do venerado filósofo, tornaram-se também bodes expiatórios académicos. Em Junho, a Associação Americana de Professores Universitários apelou às faculdades que se descartassem dos institutos, a não ser que a Hanban lhes desse controlo sobre todas as questões académicas. O sindicato sustentava que as escolas anfitriãs permitiam aos institutos “aplicar uma agenda estatal” recrutando e controlando o pessoal, escolhendo os currículos e restringindo o debate. Mais tarde, as universidades de Chicago e do estado da Pensilvânia acabaram com os seus centros Confúcio.

Os responsáveis da Hanban nos EUA e na China não responderam às perguntas enviadas por email.

Como director na USF, Peng coreografou as cerimónias de abertura do Instituto em 2008, com a participação do cônsul geral chinês de Houston e com um jantar iluminado por lanternas, um espectáculo de magia e uma volta de barco pela baía de Tampa. Peng montou os cursos do instituto e abriu um centro cultural. Até que, em 2009, a sua carreira se desmoronou e o FBI voltou a entrar na sua vida, não necessariamente por esta ordem.

Em Março desse ano, Xiaonong Zhang, que era então directora associada do instituto, queixou-se à universidade que Peng estava a exercer uma gestão danosa, a requisitar ajuda dos funcionários para assuntos pessoais e a fazer abordagens inapropriadas e comentários com teor sexual à professora convidada de Nankai, Baojing Sang, e outras mulheres. Shuhua Liu Kriesel, antiga funcionária do instituto, apareceu acusando Peng de “se inclinar para ela e colocar-lhe o braço à volta enquanto ela trabalhava” e de lhe pedir para lhe comprar roupa, lavar a loiça e preparar-lhe refeições, de acordo com relatórios da USF com a descrição das queixas. Tal como Zhang, referia as suas preocupações pelo comportamento de Peng face a Sang.

Peng diz que tratava bem os empregados e que Kriesel, que demitira recentemente, e Zhang tinham ressentimentos em relação a ele. Peng e Zhang tinham trocado emails afectuosos entre 2007 e 2008, onde se referiam um ao outro como Grande Elefante do Mar e Pequeno Elefante do Mar. Depois afastaram-se, comentaram ambos.

A partir da China, Baojing Sang afirma que Peng foi um supervisor cuidadoso e que não a incomodou. Afirmou desconhecer que Zhang e Kriesel a tivessem referido nas suas queixas.

Peng recebeu uma licença do instituto, remunerada, enquanto a investigação decorria. As alegações foram “na verdade uma cilada do FBI” para “me convencer a espiar para eles”, escreveu em 2012 numa queixa em que acusava a universidade de discriminação racial.

A USF recusou-a. O vice-reitor, Dwayne Smith, afirmou que o seu gabinete não tinha “qualquer indício de que o FBI tenha estado em contacto com as duas funcionárias que apresentaram as suas preocupações sobre a conduta do dr. Peng”.

Zhang e Kriesel dizem não ter tido qualquer contacto com o FBI. Mas os registos telefónicos obtidos através de um pedido público indicam que Mercurio esteve em contacto com alguém na USF antes das queixas apresentadas por Zhang e Kriesel. Mostram 12 telefonemas do telemóvel de Mercurio para um ou mais números da USF entre Janeiro e Fevereiro de 2009. A universidade não divulgou os números, alegando uma isenção prevista pela lei dos registos públicos da Florida para proteger tudo o que possa identificar um informador confidencial.

No seu primeiro encontro, Mercurio disse a Peng que suspeitava de que os institutos Confúcio faziam espionagem, afirmou ele. Em 2009, o FBI estava a analisar essa possibilidade, a nível nacional, mas decidiu que faltavam provas para executar uma investigação abrangente, de acordo com um antigo responsável federal que não quis ser identificado porque o inquérito nunca se tornou público. Peng disse à agente que ela estava enganada. A China nunca usaria os institutos Confúcio para fazer espionagem, com receio de que os EUA descobrissem e os encerrassem, declarou.

Mercurio criou uma conta de email — snowbox35@yahoo.com — para onde Peng a poderia contactar, referiu o professor. O endereço não a identifica, mas os emails vinham assinados por “Dianne”. Pediu a Peng que voltasse a contactar antigos colegas de escola e colegas dos institutos geridos pelos serviços de segurança chineses para recolher informações sobre as estratégias de política externa da China, ainda segundo o professor. Também queria saber coisas sobre os seus amigos chineses que trabalhavam nos EUA, Hong Kong e Macau.

Estes pedidos eram potencialmente perigosos e não apenas para Peng. Pedir a uma faculdade que faça trabalho clandestino põe em risco o acesso à investigação e a segurança pessoal de todos os académicos, comenta James Millward, professor e especialista em História da China da School of Foreign Service da Georgetown University.

Peng recusou-se a ajudar Mercurio, afirmando que preferia esperar pelo veredicto da universidade — o primeiro de uma série de gestos para ganhar tempo. A sua relutância para espiar a China era, pelo menos em parte, prática. “Preferia apodrecer numa cadeia americana do que numa cadeia chinesa”, disse uma vez ao seu mentor na USF, Harvey Nelsen, antigo analista da China na Defense Intelligence Agency.

A USF acabou por encerrar a investigação sobre o assédio sexual depois de Zhang e Kiesel terem optado por não prosseguir com as queixas. “Estava cansada de contar aqueles factos desagradáveis vezes sem conta”, comentou Zhang. Mas a escola continuou a observar Peng e o que descobriu pôs em risco o seu emprego e a sua liberdade.

Em Agosto de 2009, enquanto analisava o seu computador da universidade, uma auditoria da USF encontrou “uma enorme pasta com material sexual com conteúdo perturbador”, adiantou a escola. O reitor da USF, Ralph Wilcox, demitiu Peng de director do Instituto Confúcio.

O material, que incluía imagens sádicas de mulheres, estava relacionado com a sua investigação académica, defendeu-se Peng. “Fotografias sado-maso e mulheres nuas são uma parte importante da cultura japonesa, e não compreendemos totalmente a cultura japonesa sem isso.”

A auditoria da universidade foi espreitar também os gastos de Peng. Tinha desviado 15.590 dólares para despesas com entretenimento e viagens, fingindo sobretudo que se destinavam a investigação ou participações em conferências, quando na verdade estava de férias ou a leccionar nas universidades chinesas, concluíram. Disseram também que Peng escreveu cartas de apoio a candidaturas de imigração de estudantes e professores chineses indicando que seriam pagos pela USF, aumentando assim as suas hipóteses de aprovação dos vistos.

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A USF acabou por encerrar a investigação sobre o assédio sexual depois de Zhang e Kiesel terem optado por não prosseguir com as queixas Phelan M. Ebenhack

Peng foi realmente às conferências, e as somas que prometeu aos estudantes sofreram alterações, afirma. “De certa forma, posso dizer que não conheço bem os procedimentos da universidade e que não distingo muito bem as contas privadas das universitárias”, escreveu numa resposta ao Relatório de Auditoria e Regulamentação. “No entanto, faço-o sobretudo a favor da universidade.”

O próprio departamento de Peng bloqueou os seus programas de licenciatura durante três anos por ter dado as respostas de exames anteriores a dois alunos chineses que estavam prestes a ser avaliados. Peng argumentou que não havia regras que o impedissem de o fazer e que isso era comum na China.

Entretanto, o FBI parecia seguir a par e passo a investigação dos auditores. Mercurio ligou três vezes para o gabinete de auditoria a 20 de Outubro de 2009, inclusive para o telefone de Kate Head, que conduzia a pesquisa ao Instituto Confúcio. A 10 de Novembro, foi enviado a Peng um esboço do relatório. Dois dias depois, houve duas chamadas feitas do telefone de Head para Mercurio. Head recusou-se a prestar declarações.

Mercurio e outro agente do FBI levaram Peng a almoçar no dia 17 de Novembro e discutiram com ele o relatório de auditoria, como mostra um email. No dia seguinte, Peng recorreu a Mercurio.

“Se o relatório final for muito mau e eu for duramente castigado, estarei numa posição demasiado frágil para a ajudar porque certamente irei perder a minha reputação na China”, escreveu Peng para o email snowbox. “Se me puder ajudar, e o meu estatuto e reputação ficarem intactos, prometo fazer muito por si.”

“Provavelmente, não há muito que eu possa fazer”, respondeu a agente. “Mas deixe-me verificar a sua situação e se puder ajudo-o.”

De acordo com Peng, Mercurio sugeriu-lhe que considerasse um ofício fora da academia, gerindo uma empresa de fachada que o FBI criaria. Peng afirmou que a tentou convencer de que isso não funcionaria porque ele precisaria de estar ligado à USF e ao Instituto Confúcio para fazer o que o FBI queria que ele fizesse — aproximar-se dos membros do Governo chinês. Para a agência, os institutos eram “um óptimo disfarce”, insistiu.

A polícia da USF ligou para o escritório de Mercurio duas vezes a 17 de Dezembro de 2009; uma das conversas durou mais de 14 minutos. O relatório final da Auditoria e Regulamentação veio a 28 de Janeiro de 2010. Os auditores denunciam à polícia da universidade o alegado roubo de Peng de fundos públicos e a fraude dos vistos. Mercurio conversa com a polícia da universidade durante 12 minutos nesse dia, de acordo com registos telefónicos.

“Percebi que ela pediu à polícia da USF que não fizesse nada com aquele caso até ela avaliar a situação”, escreveu o advogado criminal Stephen Romine a Peng a 17 de Fevereiro, depois de ter conversado com Mercurio.

Os responsáveis da universidade ficaram surpreendidos com o relatório. O presidente, Judy Genshaft, o conselheiro Steven Prevaux e o reitor Wilcox “queriam pô-lo na cadeia pelo que vem no relatório”, disse-lhe mais tarde por email o seu advogado civil, Steven Wenzel, antigo conselheiro da USF.

No início de Março, Mercurio encontrou-se com Peng e Romine, como se pode constatar por emails. Concordaram que ele colaboraria com o FBI em “questões de segurança nacional” e que Mercurio o defenderia na universidade, adianta Peng.

Periodicamente, Wenzel dava-lhe conta dos progressos com “os nossos amigos”, o eufemismo do advogado para o FBI. Depois de um grupo da USF se ter reunido para rever o caso de Peng, Wenzel disse-lhe: “Os nossos amigos e eu estamos a trabalhar para parar com isto, mas está a levar mais tempo do que eu estava à espera.”

Mercurio é “a única que consegue que a USF ceda”, escreveu Wenzel a Peng em Agosto de 2010. “Estamos dependentes dela.”

Enquanto Mercurio negociava com a escola, fazia Peng relatar-lhe as suas viagens à China e pressionava-o para que lhe desse informações sobre a comunidade chinesa de Tampa. Procurou os seus conselhos sobre a melhor forma de induzir outros sino-americanos, incluindo professores e empresários, a colaborar com a agência, disse ele. De vez em quando, encontravam-se, por vezes com outros agentes do FBI, suficientemente longe da USF para que ninguém reconhecesse Peng, normalmente num jardim de oliveiras ou num hotel do aeroporto.

Talvez para lhe alimentar o ego, Mercurio disse-lhe que as suas informações iam directas para o Presidente Barack Obama, conta Peng. Dava as suas opiniões sobre a política chinesa em relação a Taiwan e outros tópicos gerais, mas afirmou que evitava ao máximo dar nomes e detalhes. Apesar de ter recusado ao FBI participar num teste com detector de mentiras, aceitou vários milhares de dólares para viagens à China, admitiu.

“Estou disposto a servir o meu país utilizando as minhas capacidades especiais e os meus recursos. Mas tenho de ser tratado de forma honrada e justa”, escreveu num email a Mercurio a 11 de Agosto de 2010. Dizia-lhe que lhe era “impossível fazer mais concessões. Mesmo que você e a USF me torçam o braço e me obriguem a um compromisso mais injusto, a longo prazo isso irá prejudicar o nosso objectivo comum. Por favor, não deixe que a USF continue a destratar-me”.

Mercurio desvalorizou-o. “A sua ajuda ao meu gabinete nesta altura não é considerada substancial, apenas mínima”, escreveu. “Por isso, perceba que até aqui coloquei a minha cabeça em risco por si, sabendo que uma ajuda substancial poderá nunca acontecer. Um obrigado, em vez de uma lista de exigências, seria bom, para variar.”

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A skyline de Tampa. O FBI quis saber detalhes sobre a comunidade chinesa da cidade BRENDAN SMIALOWSKI/AFP

A 24 de Agosto de 2010, Peng e a universidade chegaram a acordo sobre as alegações contra ele. Seria multado em 10 mil dólares e suspenso entre Dezembro de 2010 e Dezembro de 2011, sem remuneração, mantendo o cargo, que a escola ameaçara destituir.

Quando questionado se o FBI ajudou a salvar o emprego de Peng, Wenzel respondeu: “É praticamente isso.”

Peng disse que os agentes do FBI lhe disseram que conseguiriam influenciar a universidade a seu favor porque a escola estava agradecida pelo trabalho da agência no caso da acusação contra o professor da USF Sami Al-Arian, em 2003. Mais tarde, dar-se-ia como culpado de conspirar para fundar um grupo terrorista palestiniano. A USF tinha anulado um acordo para pagar quase um milhão de dólares por Al-Arian, talvez por estar à espera da acusação, afirmou o seu advogado na altura, Robert McKee.

O FBI não teve qualquer intervenção no castigo de Peng, garantiu a porta-voz da universidade, Lara Wade-Martinez. A USF disse sempre ao FBI que “tomaria as suas próprias decisões” em relação a Peng, cuja punição foi apropriada e consistente com casos anteriores, adiantou numa declaração. Genshaft e Wilcox recusaram-se a comentar.

Peng não foi acusado criminalmente, apesar de o detective policial da universidade Jeff Collins ter dito numa entrevista que havia provas suficientes para que fosse. A polícia da escola não prosseguiu com as acusações porque Peng tinha chegado a acordo com a universidade, disse Wade-Martinez. O departamento de Imigração dos EUA encerrou a investigação às alegadas falsificações de documentos para os vistos sem qualquer punição, segundo Tamara Spicer, porta-voz da agência em Tampa.

Depois do acordo, alguns emails mostram que Mercurio tentou sem sucesso que a universidade facilitasse o acesso de Peng a responsáveis chineses. Mercurio foi com um agente da CIA conversar com Karen Holbrook, para interceder por Peng, adiantou a então vice-presidente da USF. Mercurio ligou oito vezes para o escritório dela entre 15 de Outubro e 1 de Dezembro de 2010.

O porta-voz da CIA Ryan Trapani recusou-se a comentar o caso de Peng e disse que a agência “desenvolveu uma relação forte com a academia”.

Em 2011, a Universidade de Nankai retirou-se da parceria do Instituto Confúcio, citando emails ameaçadores enviados por anónimos “chineses no estrangeiro” a residir em Tampa. Nos emails afirmava-se que Peng tinha “feito grandes sacrifícios pela mãe pátria”, mas que ainda assim estava a ser perseguido pela USF, por Nankai e pelo FBI. Nankai sustenta que foi o próprio Peng quem os enviou, o que este negou. A USF culpou também Peng e voltou a suspendê-lo, desta vez por dois anos sem vencimento, a começar em Junho de 2013.

Enquanto espera que a sua suspensão termine, em Agosto, Peng ganha a vida dando aulas na China. Apesar de o suicídio ter sido uma hipótese quando Mercurio lhe bateu à porta, decidiu seguir os ensinamentos do pai e ser persistente na adversidade. Espera criar um pólo empresarial chinês para as universidades americanas.

Desistiu da investigação académica. Com a sua reputação desfeita, também ninguém publicaria o seu trabalho, comentou. Nas aulas, apresenta a sua história como um case study da falta de entendimento entre os EUA e a China.

Em resposta à sua segunda suspensão, acusou a USF de retaliação por se ter recusado a espiar a China. Foi “de longe o caso mais exótico que alguma vez tivemos”, afirmou Robert Welker, o negociador do sindicato da faculdade. A USF recusou a sua queixa e um recurso.

O vice-reitor Smith avisara os líderes sindicais de que o Governo tinha provas suficientes para pôr Peng na prisão durante 20 anos, adiantou Welker e Paul Terry, o presidente do sindicato. Como é que ele sabia isso? O comentário de Smith foi “especulativo”, afirmou Wade-Martinez, a porta-voz, porque ele “nunca esteve em contacto com o FBI”.

Terry diz que não compreende porque é que a USF não despediu Peng, mas suspeita de que a universidade esteja preocupada que os acordos feitos com o FBI venham a público caso ele seja dispensado. Lembra-se de ter dito a um colega na altura que Peng “deve ter alguma coisa [informação] sobre a universidade”.

Com colaboração de Shai Oster em Hong Kong e Jennifer Surane. Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post/ Bloomberg News     

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