A comer é que a gente se entende

Nem só de processos vive a Justiça...

No nosso país, as relações entre a gastronomia e a Justiça são inesgotáveis e mereciam uma tese de doutoramento. Atrevo-me a sugerir algumas pistas.

No caso “Face Oculta”, o PÚBLICO fez uma louvável incursão nesta matéria com a publicação, em 15/11/2009, de um trabalho do jornalista Luís Francisco com o título O homem que gostava de peixe.

Aí se relatava que na acusação eram referidos oito restaurantes em que o empresário Manuel Godinho almoçara no âmbito das suas actividades: o primeiro a ser citado no documento da acusação era o restaurante Batista, em Vilar, São Bernardo, Aveiro que só era referido uma vez, ao contrário do Mercado do Peixe, em Lisboa, que fora visitado quatro vezes. O Concha, na praia do Furadouro, Ovar, e o Ruca’s, em Cacia, completavam o trio de casas aveirenses que foram cenário de episódios gastronómicos do caso Face Oculta. Em Lisboa contaram-se também o Hotel Altis, o Páteo e o Sete Mares (este em três ocasiões). O Bom Petisco, de S. Torpes, Sines, completava o cardápio. Para além destes oito restaurantes, era referido na acusação um almoço em Vinhais mas sem indicação do restaurante.

A essencialidade dos almoços no âmbito dos processos judiciais no nosso país é tal que Manuel Godinho viu agravadas as medidas de coacção que lhe tinham sido impostas, nomeadamente com a prestação de uma caução no valor de 100 mil euros, em virtude de ter violado a proibição de contactar com outros arguidos no processo. E porquê? Porque tinha sido visto a almoçar com Jorge Saramago, funcionário de uma das suas empresas e co-arguido no processo. Poderá dizer-se que o apetite foi mais forte do que a medida de coacção.

O juiz Carlos Alexandre, pelo seu lado, já está envolvido em dois almoços: o primeiro, relatado por Ana Henriques aqui no PÚBLICO, reporta-se ao caso BES e foi arquivado: Visto a almoçar numa tasca de grelhados em Moscavide com um jornalista, o juiz Carlos Alexandre foi acusado, por carta anónima enviada à Procuradoria-Geral da República, de lhe ter passado informações confidenciais sobre o interrogatório judicial de Ricardo Salgado. Um outro almoço com jornalistas, segundo foi noticiado, tê-lo-á obrigado, há poucos dias, a prestar declarações no âmbito de um outro processo por violação de segredo de justiça, desta vez respeitante ao caso “Marquês”. Parece aconselhável uma dieta mediática.

Não se pense que isto de almoços e justiça funciona só para os casos mediáticos. Basta ir ao site da Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa para se confirmar que esta prática está disseminada: uma informação, com data de 08/10/2014, por exemplo, com o título Furtos no eléctrico n.º 28 da cidade de Lisboa refere que o Ministério Público requereu o julgamento em tribunal colectivo de dez arguidos pela prática de dezenas de crimes de furto qualificado. Segundo a PGDL, no processo terá ficado indiciado que estes arguidos constituíram um grupo que agia de forma planeada com o propósito de subtraírem diariamente valores e dinheiro aos utentes de transportes públicos, com particular incidência do eléctrico nº 28 da Carris e, atenção: o grupo reunia-se diariamente à hora do almoço nas proximidades do eléctrico n.º 28, na Rua da Conceição, junto da igreja da Madalena, onde combinavam o plano diário de subtracção de valores aos utentes desse transporte”.

É certo que esta informação não especifica se estes encontros à hora de almoço incluíam a refeição, mas ninguém duvidará que, nem que fosse uma bucha, alguma coisa estes amigos do alheio haviam de comer. A hora escolhida para a reunião não era, seguramente, inocente.

O mediático pequeno-almoço do jogador Luís Figo com o ex-primeiro ministro José Sócrates em plena campanha eleitoral também figura nos anais gastro-judiciais. O jogador ofereceu, entre torradas, o seu apoio à reeleição daquele, o que coincidiu com venda dos direitos de imagem do jogador ao parque tecnológico de Oeiras Taguspark contra a modesta maquia de 750 mil euros. Luís Figo veio a esclarecer, mais tarde, que o pequeno-almoço com Sócrates fora para saber do futuro do BPN. Esclarecimento que dissipou quaisquer dúvidas que pudessem existir quanto à função eleitoralista daquele pequeno-almoço a troco do negócio com a Taguspark.

No campo das refeições judicializadas, não pode, também, deixar de se referir o almoço entre o ex-procurador-geral Pinto Monteiro e o ex-primeiro-ministro José Sócrates, três dias antes da detenção deste. Segundo esclareceu o ex-procurador-geral em declarações televisivas, falaram somente de viagens e de livros. No fundo, nada que não fosse possível antecipar pelos portugueses que se interessam pelas relações da gastronomia com a Justiça.

Em Portugal, no mundo da Justiça e não só, do que precisamos todos é de um grande estômago.

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