Fecho dos hospitais psiquiátricos “agravou problemas de muitos doentes”

Estudo analisou processo de desinstitucionalização e detectou muitas assimetrias. Há doentes em verdadeiras estruturas de reabilitação e outros depositados em residências sem apoio.

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As crianças serão “os futuros cuidadores" das pessoas atingidas pelas demências Daniel Rocha

O encerramento dos hospitais psiquiátricos podia ter sido o momento certo para reintegrar os doentes crónicos na comunidade, mas a desinstitucionalização falhou e “agravou os problemas de muitos doentes”. Há casos de pessoas que viviam naquelas instituições e que foram transferidas para locais isolados, a quatro quilómetros da terra mais próxima. Outros foram parar a espaços com mais de 300 pessoas e sem apoio técnico. Houve até casos de lares ilegais. O cenário é traçado por Filipa Palha, presidente da Associação Encontrar-se, dedicada à reabilitação de doenças mentais, e autora de um estudo sobre esta reforma na área da saúde mental, que serve de base a um encontro desta sexta-feira da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental.

“Tínhamos um plano para ser posto em prática que implicaria estarem garantidas determinadas premissas. Pressupunha o encerramento dos hospitais mais antigos e a sua substituição por alternativas na comunidade. Lamentavelmente, constatamos que as premissas que o plano defendia não estavam garantidas e que falhou. É o mesmo que dizer que um eléctrico precisa de dois trilhos para andar. Se eu só tenho um trilho, era evidente que ele iria descarrilar”, ilustrou ao PÚBLICO a também investigadora do Centro de Estudos em Desenvolvimento Humano da Universidade Católica Portuguesa.

Filipa Palha alerta também que a Rede de Cuidados Continuados Integrados de Saúde Mental não saiu do papel e que faltam técnicos para trabalhar as várias vertentes da reabilitação. A psicóloga dá mais uma imagem para comparação: “É o mesmo que só termos ortopedistas [a fazer cirurgias], quando também precisamos de fisioterapeutas depois ou a pessoa vai continuar a não andar para a vida ou a mancar para a vida.” Do lado da tutela, o Ministério da Saúde já prometeu que ainda durante esta legislatura vai avançar com a atrasada Rede de Cuidados Continuados de Saúde Mental. A ideia foi repetida na quarta-feira pelo secretário de Estado adjunto da Saúde, Fernando Leal da Costa, durante a comissão parlamentar em que Paulo Macedo foi ouvido.

O estudo Trajectórias pelos Cuidados de Saúde Mental em Portugal, promovido pela Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental, procurou perceber como é que, a partir de 2009, decorreu a saída dos doentes crónicos dos hospitais psiquiátricos para outras instituições e alternativas na comunidade. Para isso, entre Janeiro de 2013 e Setembro de 2014 foram feitos vários inquéritos e entrevistas junto de instituições, técnicos, doentes e familiares. Assimetria é a palavra-chave, defende Filipa Palha. Por exemplo, no caso do encerramento do Hospital Miguel Bombarda houve doentes que foram transferidos para a Casa do Restelo — “uma estrutura comunitária de apoio máximo” — e outros para o Centro de Apoio Social do Pisão, “com 320 pessoas internadas, numa montanha em que a terra mais próxima é a quatro quilómetros”.

“Epidemia silenciosa”
“Teria sido necessário que as pessoas com responsabilidade tivessem alertado para a necessidade de adiar a desinstitucionalização, ou estes processos podem ter consequências graves. O estigma e a vergonha, associados ao medo de se expor um problema de saúde mental, impedem as pessoas de lutar como fez o senhor da hepatite C na Assembleia da República”, lamenta Filipa Palha, que fala numa “epidemia silenciosa”. “Cerca de 30% da população sofre de um problema desta natureza e não prevenir e intervir precocemente faz com que estejamos perante uma catástrofe”, insiste, considerando ainda que há “um estigma em termos estruturais na alocação de recursos para termos disponibilidade para dar o melhor tratamento possível”.

O relatório Portugal – Saúde Mental em Números 2014, divulgado em Dezembro pela Direcção-Geral da Saúde, apontou dados preocupantes sobre a realidade portuguesa. As perturbações mentais roubam mais anos de vida saudável do que o cancro. O documento alertava também que a falta de equipas comunitárias de saúde mental está a levar a que a prescrição de medicamentos seja “a resposta predominante, mesmo nas situações em que não está particularmente indicada”. Segundo o relatório, as perturbações psiquiátricas atingem mais de um quinto da população portuguesa. Em comparação com outros países ocidentais, Portugal apresenta assim dos mais altos valores de prevalência de perturbações psiquiátricas (22,9%), apenas comparáveis com a Irlanda do Norte (23,1%) e com os Estados Unidos (26,4%).

Números que preocupam a presidente da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental, que conduz o encontro desta sexta-feira com base nos resultados do estudo de Filipa Palha. “Alertámos em múltiplas intervenções sobre o problema de se fazer um encerramento dos hospitais rápido demais, sem haver estruturas preparadas para receber os doentes. Não foram criadas estruturas específicas para a prestação de cuidados de saúde mental em alternativa aos hospitais. Na prática, estes doentes não foram desinstitucionalizados, foram transinstitucionalizados”, defende Luísa Figueira.

Contudo, para a psiquiatra, é sobretudo fundamental olhar para o futuro e evitar uma repetição do que aconteceu — com doentes a viverem décadas em hospitais. “Temos de perceber como vamos evitar que dentro de cinco ou dez anos tenhamos os serviços hospitalares com camas de doentes residentes. Mas mais importante, temos de começar a tratar cada vez mais cedo e diminuir o estigma. Temos de tratar precocemente mas também temos de encontrar maneiras de prevenir o que pode ser prevenível”, diz Luísa Figueira. Para isso, considera fundamental rever o Plano Nacional de Saúde Mental e a forma como o sector é financiado. Lembra também que “estamos na cauda de todos os países da União Europeia” em termos de indicadores de saúde mental, com o país a surgir em 28.º lugar num total de 30 países num trabalho publicado no final de 2014 pelo The Economist Intelligence Unit.

“Nada disto é aceitável quando temos o conhecimento para fazer com que as pessoas que adoecem hoje possam recuperar o seu potencial máximo e não voltem a precisar daquelas instituições”, acrescenta Filipa Palha. “O senhor que pediu o tratamento para a hepatite C o que exigiu foi o melhor tratamento e aquilo que as pessoas com um problema de saúde mental vêem é o seu tratamento muitíssimo limitado. É uma forma de estarmos a condicionar a sua recuperação, que pode não levar à morte física mas à morte de um potencial de vida.”

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