O apocalipse foi amanhã

J.B., o pequeno-burguês universal que deve o seu nome tanto ao Job dos impossíveis sacrifícios bíblicos como a uma dopante marca de whisky, vive a vida futura no presente. A partir de hoje, o protagonista da nova peça de Jean-Pierre Sarrazac, em estreia mundial no Teatro Nacional São João, chegou ao fim das possibilidades. Não chegámos todos?

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J.B. acorda de manhã em suores frios, e é logo aí que começa a tremer com o corpo todo: vê a porta do escritório entreaberta, e o Pitbull de dentes cerrados a anunciar que é pena mas vai ter de o despedir (será muito melhor se não entrarmos em pânico e muito ordeiramente chamarmos a isto efeitos colaterais da crise – cíclica! – do capitalismo). Não é o único: para todos os efeitos, na nova peça de Jean-Pierre Sarrazac que Fernando Mora Ramos, do Teatro da Rainha, e Nuno Carinhas hoje fazem chegar ao Teatro Nacional São João (TNSJ), no Porto, em estreia mundial, J.B. é a abreviatura da multidão, o pequeno-burguês universal (parar usar a terminologia de Giorgio Agamben, cujo O que resta de Auschwitz? é assumida referência, tanto ideológica como iconográfica, deste O Fim das Possibilidades – Uma Fábula Satânica) que se vê sem emprego, sem casa, sem mulher, sem filhos. Depois de 40 anos a viver acima das suas possibilidades, amanhã chegou ao fim delas (J.B., querido, não chegámos todos?).

É uma “doença da cabeça, a antecipação”: “Aconteceu amanhã. Amanhã o Pitbull acabou comigo. Amanhã a minha mulher pôs-me à porta da minha casa. Amanhã os meus filhos já não me conhecem. Amanhã, vou-te dizer, amanhã enforquei-me!”, garante a Mamadou (Alberto Magassela), o africano sem-papéis que o obriga a cuspir sangue no ginásio espeluncoso em que treina todos os dias para não ir directo para casa, ou para os braços do whisky que o dopa diariamente (nome de guerra, J.B.). Também está prestes a perder o emprego, Mamadou. Foi amanhã, por causa da miúda que viu a roubar biscoitos e barritas de chocolate no minimercado e que não denunciou, mais por desejo do que por pena. Agora Mamadou vai ter de deixar os combates de boxe de que foi campeão mais de 20 vezes, de sair da pensão, e de partir os dentes todos enquanto desce até ao mais fundo dos fundos. O apocalipse dos desfavorecidos é sempre mais abaixo, num campo que o Diabo de O Fim das Possibilidades vende, mesmo sem folheto publicitário, “como se se tratasse da terra prometida, de um cruzeiro de longo curso, de um novo Eldorado” com “serões recreativos, saídas em grupo, excursões, dias de alpinismo e noites de loto” – e que na verdade se reduz a “escuridão e mais escuridão”, “dormitórios como incubadoras, toda a noite na luz máxima”, “camas de campanha amontoadas e corned-beef que data da última guerra”, “sem contar com o escorbuto e todo o género de epidemias que já não se viam desde a Idade Média”.

Estamos “para lá de todo o realismo”, no submundo negro e terminal do pós-crise que, visto de cima, “do mais baixo dos céus” onde Deus (Ivo Alexandre) e o Diabo (Fernando Mora Ramos) espiam de perto os multiplicados infortúnios da espécie humana e imaginam maneiras de a castigar sem a levar directamente ao suicídio (a ser alguma coisa, “o novo Eldorado” será uma fábrica de mártires exemplares, dando “corpo à famosa convicção ‘ai aguentam, aguentam’, para citar um dos encenadores, Nuno Carinhas, em texto incluído no programa do espectáculo), exactamente como no Livro de Job dos tão insuportáveis sacrifícios bíblicos. Mas por algum motivo J.B. não quer as férias no campo a que como indesejável tem direito – é um problema para Deus, que assim se vê obrigado a interromper a sua solitária sessão de ballet para conferenciar com o Adversário que, de trolley e sapatos na mão, parece prestes a iniciar o seu périplo de recrutamento para “aquele lugar que até para os mortos é sinistro” (chama-se Sheol).

É essa a parábola de O Fim das Possibilidades: chegados ao pós-capitalismo, somos todos indigentes, campeões da sobrevida (ou, no caso isolado de J.B., da sobremorte), condenados a deambular num inferno auschwitziano assombrado pelo ruminar de chuvas e demolições. Ali se concentram, distintivo no casaco, a mulher que não pode impedir-se de se tornar má, apesar dos médicos e dos medicamentos; o novo-rico que já não aguentava mais o café, o hotel de 35 quartos, o complexo Talasso, a fábrica de sardinhas, “greve atrás de greve e nada no caderno de encomendas”; a miúda que gostava de ser um animal, talvez uma galinha, e que tende sempre a desaparecer num qualquer buraco negro (“Sempre gostei de cinema e detestei o fim do filme. Quando voltam a iluminar a sala”); o homem que já não tinha sequer um tostão para pagar a pensãozinha (“Não era cara, nada cara. Mas quando não se tem um tostão não se tem um tostão”). Próximo?

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Mamadou (Alberto Magassela) e J.B. (Paulo Calatré) são os dois peões com que o Diabo, de preto (Fernando Mora Ramos), e Deus, de branco (Ivo Alexandre), jogam no mais baixo dos céus deste O Fim das Possibilidades tuna/tnsj
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A felicidade
Última peça do crítico e dramaturgo Jean-Pierre Sarrazac, O Fim das Possibilidades é também uma espécie de nova versão da primeira, Lázaro também ele sonhava com o Eldorado, estreada em França em 1976 e encenada no Porto, pelo mesmo Fernando Mora Ramos, uns anos depois. Lázaro, o também bíblico protagonista desse texto de estreia, era um emigrante vítima de três malfeitores que lhe prometiam a América e acabavam a explorá-lo como atracção de feira nas praças europeias. Ao mesmo tempo, é o draft de uma peça coral (Chant du Départ ou Le Grand Départ, reunindo sem-abrigo num salão de festas abandonado) e eventualmente o princípio do próximo capítulo – assim se entende que a última cena, a do almoço de domingo num jardim de plástico com piscina de plástico, seja tão misteriosa, tão em off, tão patamar aberto para o vazio (“Uma private joke do autor”, ressalva Nuno Carinhas).

“Parábola da crise económica, social e política que atravessamos hoje na Europa”, o espectáculo da crise de J.B., do seu suicídio falhado (ou bem-sucedido, depende do ponto de vista), O Fim das Possibilidades apareceu na secretária de Fernando Mora Ramos em versão PDF e viajou de novo até França, já na bagagem dividida a meias com Nuno Carinhas, para que o autor pudesse esclarecer alguns “referentes escondidos” do texto (o que toca em Woyzeck, o que toca na commedia dell’arte, o que toca nas Seis Propostas para o Novo Milénio de Italo Calvino, o que toca em Agamben), e regressou ao Porto a tempo de participar na conferência homónima em que a dupla de encenadores pôde forçar, na presença de Sarrazac e com o contributo de oradores como João Barrento e Alexandra Lucas Coelho, uma discussão mais política sobre uma peça que também se assume como “utopia contra-patronal”. Já em cima dos ensaios, o “encenador de dentro” (que é também o Diabo desta peça) e o “encenador de fora” (que, “não sendo actor”, não pôde vestir o roupão de felpo e transformar-se em Deus, mas imaginou a cenografia toda em “sala das máquinas”, muito O Navio de Fellini, e os figurinos “a carvão”) acertaram-se com alguma facilidade. “É um prazer estar de acordo com outras maneiras de ver, sobretudo num meio tão dado ao auto-centramento. E este espectáculo seria completamente diferente se cada um de nós o tivesse encenado sozinho”, explica Fernando Mora Ramos. Mesmo politicamente, o consenso foi praticamente inevitável: “Podemos ou não ter alusões ou metáforas diferentes, podemos ou não colar-nos à notícia do dia – e entretanto as eleições na Grécia saíram-nos historicamente ao caminho –, mas não dá para grandes desvios porque o texto é de facto muito assertivo. Se pensarmos que o Jean-Pierre Sarrazac começou a escrever esta peça em 2012 e que entretanto, chegados a 2015, a crise não só se manteve como se agravou, já é uma metáfora enorme. Ele é que jogou o jogo da antecipação”, continua Nuno Carinhas. E o jogo do teatro, porque a coincidência entre o mundo e o palco é recorrente neste texto de Sarrazac: J.B. é o “erro de casting” que é preciso mandar “para bastidores” e o Diabo “não trata da figuração” (o que “é pena”).

Para o Diabo, Fernando Mora Ramos, esta é, literalmente, “a peça da crise” – a parábola com que sonhou acordado sobre “esse negócio montado pelos mais ricos dos ricos” e que a ex-classe média continua a pagar a juros altíssimos, talvez na esperança de um dia poder, como a outra metade, atirar-se para a piscina. Nisso, o final de O Fim das Possibilidades não podia ser mais cínico, como se a propaganda do Diabo se tornasse realidade (“É um golpe de marketing, um golpe publicitário”): “Naquele almoço de domingo o J.B. fala-nos de um certo lugar de amizade que se mistura com um consumismo escancarado de que é difícil fazer a apologia de mão-beijada”, admite Nuno Carinhas. Um comunismo, contrapõe Mora Ramos, mas um comunismo já “infectado” por essa ideia de que é possível “comprar a felicidade a prestações, começando a pagá-la agora para atingir o êxtase em 2033”.

J.B. não morreu, Mamadou parece finalmente integrado, os miúdos brincam uns com os outros no jardim, Gladys e a ladrazita puseram vestidos novos, de Primavera – quase que se podia falar de felicidade. Pena, tantos anos de crise às costas depois, sabermos tudo o que sabemos hoje. 

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