O cansaço dos corpos

A primeira exposição em Portugal da libanesa Marwa Arsanios evoca o movimento dos corpos para nos confrontar com a violência das ideias

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Corpos oprimidos pela imprevisibilidade da História
Notes for a choreography,

 na Kunsthalle Lissabon, é duplamente simbólica. Inaugura as novas instalações do espaço lisboeta, agora localizado em Xabregas, e apresenta aos espectadores uma artista que desenvolve a sua actividade numa região marcada pela instabilidade política e ameaçada por conflitos militares. Marwa Arsanios (Estados Unidos, 1978) vive e trabalha em Beirute. Espaço e artista conjugam assim um significado que importa destacar: o da resistência. Louvem-se a capacidade de adaptação e o ânimo de João Mourão e Luís Silva, que permaneceram ao leme da KL, garantindo a sua vida. Mudou o lugar, não o espírito.

Formada pela Universidade das Artes de Londres, Marwa Arsanios tem produzido instalações, textos, filmes e performances que lidam com as promessas e os falhanços de uma narrativa hoje aparentemente abandonada: a do nacionalismo árabe dos anos 50 e 60 e da modernização das sociedades que o seu programa político anunciava. No rastro do impasse ou do falhanço desse processo, a artista evoca e problematiza, com uma melancolia lúcida, a arquitectura, a violência, o feminismo ou a descolonização. A sua abordagem é de uma reconstituição e releitura das histórias e da História, por meio de objectos, sobretudo livros e revistas, que elege como materiais.

No filme de animação I’ve Heard Stories (2008) vêem-se desenhos de dois homens (discutem, agridem-se, amam-se?) e de interiores de um edifício, de uma arquitectura. Informação complementar permitem entrever a origem do local. Trata-se do Hotel Carlton, em Beirute, que entre 1973 e 1993 terá sido um “refúgio” da comunidade gay da cidade. Boato ou realidade? A artista não esclarece, tal como não esclarece os misteriosos assassinatos cometidos no hotel, um dos quais terá vitimado o político libanês Henri Pharaoun. O que as imagens devolvem ao espectador não é conhecimento, mas a violência obscura e imprevisível da história. Ao fazê-lo, todavia, a artista oferece também uma elegia dedicada a todas as vítimas esquecidas.

O novo filme que resulta de uma co-produção da da Kunsthalle Lissabon e do Art in General, em Nova Iorque, chama-se OLGA’s NOTES, all those restless bodies e faz parte do projecto Al Hilal cujo nome é tomado a uma revista egípcia de arte e cultura. Marwa Arsanios tem vindo trabalhar com uma colecção da publicação, datada dos anos 50 e 60, e foi exactamente um artigo publicado na edição de janeiro de 1963 que instigou este trabalho. O que nos mostra? Uma sequência de planos de coreografias. Há uma mulher que dança num varão, outra que tenta reproduzir os movimentos de uma dançarina “exótica” e outra ainda que reinterpreta Trio A, de Yvonne Rainer. A montagem é extramente fluida e discreta, ao ponto de os corpos se confundirem no movimento das imagens, como se obedecessem a uma universalidade. Mas a estes corpos acrescentam-se outros, aqueles imobilizados em fotografias da exibição do bailado A Fonte de Bakhshisarai, retiradas da revista Al Hilal, e os de homens que trepam, em pleno trabalho, edifícios no Cairo. A dança e o movimento dos corpos cedem, então, progressivamente, o lugar à exploração, ao cansaço e à desilusão que sobre eles se abatem. As bailarinas improvisam, hesitam, imitam, trabalham.

Refira-se que o artigo original fazia referência à criação de uma escola pública de ballet na capital egípcia, instituição que se tornaria um símbolo do projecto de modernização do Egipto concebido por Gamal Naser (“uma fábrica de corpos”, assim ficou conhecida). O estado-nação enquanto ideia que tem efeitos materiais na vida dos corpos surge, assim, como um dos “temas” do filme. Foi a sua construção, parece dizer a artista, que (também) modelou as coreografias da dançarina, da stripper, da bailarina, do operário, corpos tão oprimidos por essa utopia (a da violência do progresso) como pela imprevisibilidade da história e da acção dos homens.

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