Na cama com Edward Snowden, longe das breaking news

Citizenfour não é um documentário sobre Edward Snowden na ressaca de se ter tornado o homem mais procurado do mundo.

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Não é, em suma, o retrato de um fugitivo a lidar com as consequências pessoais e planetárias (quando uma borboleta bate as asas…) dos seus actos – ter revelado que o Governo americano recolhe secretamente informação sobre os emails, chamadas de telefone, pesquisas na Internet e os hábitos de navegação online de, virtualmente, toda a gente no mundo, incluindo Angela Merkel.

Citizenfour foi filmado precisamente no momento em que Snowden fez essas revelações, num quarto de hotel em Hong Kong, em Junho de 2013. Decorridos quase dois anos, essas revelações são, hoje, old news e o documentário não oferece muito material inédito desse ponto de vista (mesmo a revelação final de que os assassínios de alvos específicos através de ataques de drones são decididos por uma cadeia de comando encabeçada pelo Presidente Obama já tinha sido avançada pelo New York Times).

“Fazer um documentário não tem nada a ver com breaking news [notícias de última hora]”, diz a realizadora americana Laura Poitras ao telefone a partir de Nova Iorque. "Eu sabia que o material que tinha era muito diferente da actualidade informativa. E que tinha de ser mais intemporal. O meu filme mostra a História a acontecer e pessoas a arriscarem as suas vidas. Eu sabia que ver isso a acontecer em tempo real seria único.”

Talvez o mundo não tivesse ouvido falar de Edward Snowden até hoje se não fosse Laura Poitras. Em Janeiro de 2013, ela recebeu um email anónimo pedindo a sua chave pública de encriptação (um código que permite trocar mensagens por uma via segura, que só o destinatário poderá ler). Poitras obedeceu e o desconhecido respondeu com instruções para criar um sistema ainda mais invulnerável para proteger a correspondência entre os dois, prometendo revelar informação sensível. Algumas mensagens enviadas então por Snowden tinham o determinismo de uma divindade anónima – o tipo de coisa que faz soar alarmes no espectro das suspeitas. “Você perguntou por que é que eu a escolhi. Não fui eu que a escolhi. Foi você mesma.” Havia, no mínimo, duas hipóteses que Laura Poitras teria de excluir: que o anónimo fosse um louco ou um espião americano tentando obter informações sobre as fontes que a realizadora contactara para o documentário sobre vigilância estatal que ela andava a fazer.

“Fiz-lhe toda a espécie de perguntas no início. 'Como posso saber que isto não é uma armadilha?’ Esse foi o meu segundo email para ele. E ele respondeu de forma muito convincente”, lembra a realizadora. "Ainda assim, mantive algum cepticismo, o que provavelmente é uma atitude sábia em situações como essa. Ele estava a fazer declarações muito arrojadas sobre uma agência do Governo [National Security Agency, ou NSA] de onde não saem muitas fugas de informação. Em todo o caso, o meu instinto inicial é que ele era para levar a sério.”

Glenn Greenwald, um jornalista freelance que escrevia artigos e colunas de opinião críticos e combativos sobre as políticas contraterroristas e sobre a erosão das liberdades individuais na América pós-11 de Setembro, tinha sido contactado por Snowden antes de Poitras, mas a comunicação entre os dois não durou muito: Greenwald ignorou o pedido de Snowden para montar um sistema de encriptação que protegesse a correspondência.

O que terá feito Snowden procurar Laura Poitras foi a experiência pessoal da realizadora com a paranóia securitária do Governo americano. Em 2006, depois de concluir um documentário crítico da guerra do Iraque, My Country, My Country, Poitras descobriu que o seu nome fora incluído numa lista do Departamento de Segurança Nacional (Homeland Security). Todas as vezes que viajava de avião tinha de se submeter a ser revistada ou levada para um interrogatório sobre as suas viagens e o seu trabalho. Uma vez, em Viena, o agente de segurança do aeroporto informou-a de que ela estava identificada como uma ameaça de alerta máximo. Ela perguntou se isso era um sistema de classificação europeu ou americano. A resposta foi: “Não, isto foi feito pelo seu Governo e foi ele que nos pediu para a deter."

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O que fez Snowden procurar Laura Poitras foi a experiência da realizadora com a paranóia securitária do Governo americano DR

Poitras calcula que foi retida em aeroportos umas 40 vezes entre 2006 e 2012. Numa dessas ocasiões o seu computador e telemóvel foram confiscados durante semanas. No Outono de 2012, mudou-se para Berlim.

Figurar numa lista do seu Governo como uma suspeita tornou-a particularmente sensível ao tema da vigilância de Estado. Mas, mais importante do que isso, diz, deu-lhe a preparação certa para lidar com Snowden quando ele apareceu.

“Estar na lista ajudou-me a fazer Citizenfour. Como tive de tomar muito cuidado para proteger as minhas fontes, recorrendo à encriptação e coisas do género, isso deu-me o treino que eu precisava”, ri-se. “Além disso, eu já tinha sido retida tantas vezes no aeroporto que decidira que não ia parar de fazer o meu trabalho só porque o Governo me estava a tentar intimidar. Quando Snowden apareceu, a decisão foi fácil. Não me preocupei com os riscos que poderiam estar envolvidos.”

Se o Garganta Funda tivesse cara
Edward Snowden fez saber que não tencionava permanecer anónimo por muito tempo, ao contrário do que é mais comum com whistleblowers, os denunciantes que expõem actividades secretas ou informação considerada sensível pelo Governo americano. Bradley Manning, o militar por detrás da fuga de documentos secretos divulgados pela WikiLeaks em 2010 (relatórios de guerra e documentos diplomáticos), foi exposto por um ex-pirata informático que se tornara seu confidente.

“Foi uma surpresa para mim porque pensei que Snowden não quereria ser identificado. Quando ele me disse o contrário pedi que nos encontrássemos pessoalmente”, explica Poitras. “ Pessoas como Bradley Manning nunca tiveram realmente uma voz. As suas opiniões foram filtradas pela comunicação social. É isso que faz com que este caso seja singular. Ao decidir tornar pública a sua identidade, Snowden conseguiu articular a sua perspectiva, em vez de ela ser filtrada apenas pela narrativa do Governo ou dos media."

Em Junho de 2013, Poitras e Glenn Greenwald (por recomendação de Snowden, que avisou Poitras de que ela iria precisar de ajuda) viajaram até Hong Kong para conhecer o ex-analista de infraestruturas subcontratado pela NSA. Um terço de Citizenfour corresponde a esse encontro, que se desenrola ao longo de oito dias num quarto de hotel. Vemos Snowden responder às perguntas de Glenn Greenwald, a explicar as suas motivações ("Estou mais disposto a ser preso do que a aceitar o enclausuramento da minha liberdade intelectual”), a reagir aos acontecimentos à medida que eles ocorrem. Quando os três – Snowden, Poitras e Greenwald – fazem o vídeo de 12 minutos e meio que revela a identidade do informador e a sua cara está em todas as televisões do mundo como se fosse um criminoso foragido, Edward Snowden é, apenas, um homem frustrado com o estado do cabelo. Snowden está em frente ao espelho da casa-de-banho, a compor o cabelo, mas sempre insatisfeito com os resultados. A preocupação com esse detalhe contrasta com a indiferença que parece mostrar em relação ao circo mediático que está a decorrer no televisor do seu quarto, causado por ele próprio.

Citizenfour é o que Os Homens do Presidente poderia ter sido se o Garganta Funda, o informador secreto do escândalo de Watergate, que derrubou Richard Nixon e o seu Governo, tivesse tido uma cara (a sua identidade só foi revelada mais de 30 anos depois). Quando Greenwald questiona Snowden sobre as suas motivações pessoais, a resposta é: "Os media concentram-se demasiado em personalidades. Eu não sou a história aqui.”

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Mas por mais que Citizenfour procure dar um contexto mais lato, alargando o seu espectro a outras figuras (whistleblowers e activistas como William Binney, Jacob Appelbaum, Julian Assange, e o próprio Greenwald), estas parecem personagens secundárias, quando não efémeras, convocadas para preparar a chegada do verdadeiro protagonista, Edward Snowden, ou mostrar as repercussões dos seus actos, no terceiro acto do filme.

Snowden foi imediatamente definido como um herói corajoso que se sacrificou em nome do interesse público, ou um traidor irresponsável que expôs informação sensível aos inimigos da América e fugiu para não ser apanhado – conforme o ponto de vista. A imprensa americana escrutinou a sua biografia, iluminando antecedentes que soaram duvidosos para alguns ou sedutoramente humanos para outros (as inclinações políticas, a namorada stripper, as aparentes contradições de carácter).

Vendo Citizenfour, percebe-se até que ponto ele permanecia uma figura abstracta até agora, definido por especulações e suposições. Apesar de ter ouvido o ocasional “Fiquei com uma ideia diferente dele depois de ter visto o seu filme”, Poitras garante que não se preocupou com a percepção pública em relação a Snowden. “Enquanto cineasta, quero fazer filmes que levem as pessoas a conclusões diferentes. Não estou interessada em projectar apenas o que eu penso.” Poitras, que se descreve como ""uma jornalista visual”, nota que a abordagem jornalística "inclui opiniões diferentes”, concluindo: "Não quero falar em nome do público.”

Não é que o seu filme, que ganhou recentemente o Óscar de melhor documentário, decifre o enigma que é Snowden – felizmente. A sua abnegação tranquila, a sofisticação com que lida com jornalistas apesar da sua inexperiência mediática, a forma excepcionalmente articulada como responde às perguntas que lhe colocam, sugerem outros mistérios. Tudo o que ficamos a saber sobre Edward Snowden é que é um homem preocupado com o cabelo.

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