Francisco: teologia igual a “humanologia”

Francisco, provindo — segundo as suas exactas palavras — do fim do mundo, tem sido a única voz carismática e a única referência ética a nível global.

1. O frenesim vulgar e corriqueiro em que navega a política portuguesa, a par da seriedade e extrema gravidade da situação internacional e europeia — Estado Islâmico e Ucrânia, de um lado; crise, Grécia e populismos, do outro — talvez justifiquem uma paradoxal paragem para meditação. Para meditação sobre o essencial.

Perfazem-se agora, a 13 de Março, dois anos sobre a eleição do Papa Francisco. Sem dúvida, um dos acontecimentos globais mais marcantes destes tempos recentes. Francisco, provindo — segundo as suas exactas palavras — do fim do mundo, tem sido a única voz carismática e a única referência ética a nível global. Num mundo prenhe de lideranças frágeis e hesitantes, voltadas para a gestão egoísta, mesquinha e pequena das agendas diárias, sem visão e sem ambição, Francisco constitui a única e a grande reserva moral global. É a voz que prega no deserto.

2. Francisco não seria possível sem Bento XVI e a inspiração renovadora da sua renúncia. Muitos continuam sem perceber a transcendência do gesto de Bento XVI. Alguns tomaram esta renúncia apenas pelo seu valor facial: a velhice, o cansaço e a consciência lúcida da virtual incapacidade de exercício do pontificado. E outros houveram-na tão-só por uma generosa e sábia precaução política, pondo os holofotes globais no processo de eleição do papa seguinte, evitando que a respectiva sucessão fosse engendrada nos bastidores da cúria vaticana. Mas em especial por ter vindo de quem veio alguém com absoluta ciência da radicalidade e da singularidade histórica da decisão de resignação , este gesto está carregado de sentido e de significado. A atitude de renúncia tem o sentido de uma “dessacralização”, de uma “humanização”, de uma “normalização” do papado. O que, de resto, está em linha com a própria actuação de Bento XVI, que, durante o seu pontificado, já havia deixado sinais de uma visão menos “sacral” da sua missão (publicando livros na qualidade de simples teólogo e não de papa é o caso, pelo menos, de dois dos volumes de Jesus de Nazaré). A renúncia, só por si e enquanto tal, é prenunciadora e conformadora de uma renovação e de uma abertura a uma reconfiguração do exercício do múnus papal que deixa de ser “vitalício” e potencialmente eterno. Nada que surpreenda para quem leu os seus livros ou, por exemplo, a sua longa entrevista Luz do Mundo. A resignação de Bento XVI é filha do mesmo sentido profético que teve a convocação do Concílio por João XXIII. Francisco e o seu magistério não são compreensíveis nem seriam os mesmos sem este gesto fundacional e seminal. 

3. A admiração, o respeito e até o afecto que suscita o Papa Francisco advêm, antes do mais, da sua exemplaridade. Em Francisco, não há doutrinas, não há correntes teológicas, não há bulas nem decretos. Em Francisco, há gestos, há atitudes, há palavras. Francisco não actua como um filósofo, nem como um doutrinador. Arrojando um pouco, Francisco não chega a ser um pregador, nem talvez arriscando mais ainda um pastor. Francisco é um homem que faz, é um homem que fala, é um homem que acolhe e abraça. Resolve não habitar os apartamentos pontifícios, lava os pés às mulheres muçulmanas, baptiza filhos de mães solteiras e de unidos de facto, visita Lampedusa, telefona a doentes pelo mundo inteiro, não se sente capaz de julgar os homossexuais, promove a consulta dos cristãos leigos para o sínodo sobre a família, visita prisões, mostra preocupação com a situação dos recasados, abre balneários para os sem-abrigo na Praça de S.Pedro, alerta ao vir de Manila para os desafios de uma paternidade e maternidade responsáveis, dirige as suas primeiras palavras aos crentes da sua diocese (Roma), recebe em audiência transexuais, insiste na condenação do capitalismo desenfreado, mostra uma verdadeira obsessão pelos mais pobres e excluídos, abraça e beija crianças, deficientes e doentes no espaço público, verbera sem contemplações os casos de pedofilia no clero, aproxima-se de judeus e muçulmanos e demais religiões, visita países improváveis e aparentemente menos prioritários (Albânia, Sri Lanka, Coreia do Sul), serve de mediador entre Cuba e os EUA e prepara-se para tentar apaziguar a Ucrânia.

4. Perante o entusiasmo e a esperança suscitada por este papa, muitos são aqueles que esperam grandes mudanças doutrinais, relevantes câmbios teológicos e enormes reformas organizacionais da Igreja e da Cúria. Não me atrevo a dizer que elas não possam acontecer e atrevo-me até a alvitrar que elas seriam altamente desejáveis. Mas quem olha para estes dois anos de missão deste “jesuíta-franciscano” por esse exclusivo prisma, julgo que perde e falha o essencial. O que verdadeiramente distingue Bergoglio é a vontade de imitar Jesus e de imitar Jesus até no estilo.

Jesus Cristo qualquer que seja a nossa atitude e posição em termos de fé alterou, até à medula e até à raiz, o fenómeno religioso e o modo como era vivido. Mas não fez nenhuma reforma da organização da religião judaica, não escreveu nenhum tratado teológico, não levou a cabo nenhuma revolução política. Limitou-se a dar o exemplo, a acolher o próximo, a entregar-se por inteiro e sem reservas ao seu desígnio. Optou pelos marginalizados, que tanto podiam ser os pobres como os estrangeiros. Lidou sem tabus com as mulheres, falou com os romanos, tocou nos leprosos, pernoitou em casa dos cobradores de impostos, rodeou-se de pescadores iletrados. E falou sempre de modo simples e acessível, lançando mão de parábolas e de comparações, por vezes dificilmente decifráveis, sem temer o desconcerto e até o escândalo.

Francisco, mais do que toda e qualquer grande reforma, tem sido, tem sabido ser um profeta do exemplo. Interpela-nos pelo exemplo; toca-nos pelo sentido profético. À Igreja portuguesa falta o sentido profético e a nós mingua-nos o exemplo.

SIM e NÃO

SIM. Anabela Rodrigues. Num país com elevado risco sísmico, o flagelo dos incêndios e alta sinistralidade rodoviária, a ideia da ministra da Administração Interna de integrar a protecção civil na vida escolar será um enorme avanço.

NÃO. Aumento abrupto do IMI. Já aqui se disse: a gravíssima injustiça de um aumento exponencial e abrupto do IMI terá duras consequências sociais e causará danos políticos sérios.

Deputado europeu (PSD), vice-presidente do Grupo Parlamentar do PPE; paulo.rangel@europarl.europa.eu

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