Recordar Gone Home, a sua história intemporal

O jogo de estreia da The Fullbright Company vive para o amor que conta.

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Começar a jogar Gone Home é chegar ao fim de uma via rápida para outro tempo. Publicado em 2013, permitiu a muitos jogadores apoiar os cotovelos no peitoril e espreitar por uma janela digital a sua infância ou adolescência, alguns para a noite de um calendário que nunca viveram e conheceram pelas aventuras que os irmãos e primos mais velhos têm sempre na ponta da língua.

(Nota: Como este texto menciona vários momentos importantes da história de Gone Home, não será ideal a sua leitura por quem não chegou ao final do jogo e têm algum interesse em fazê-lo.)

Madrugada de 7 de Junho, 1995. Kaitlin chega a casa em Oregon, Estados Unidos da América, depois de uma temporada a viajar pela Europa. Em vez de uma comissão de boas-vindas e de ser inundada por perguntas sobre o ano que dedicou a conhecer terra nova, em vez de choros de saudades e de ser carregada com todos os afectos que ficaram em standby a mando da sua ausência, Katie chega ao desamparo de uma casa vazia.

Com a sacola e a mochila, resquícios da viagem, ainda a ganharem nova forma no chão do alpendre, vemos um bilhete na vidraça da porta principal. Samantha, a irmã, pede desculpa por não estar presente e para por favor não tentarmos saber o que aconteceu, nem onde está. Promete-me que havemos de nos ver noutro dia e que me ama. Ninguém sabe na altura, mas esta declaração de ausência é a primeira e última peça numa noite que reverberará em quase todos que terminarem o jogo dali a duas ou três horas; ninguém sabe mas está a entrar devagar numa história da qual ficará a escrita e a sensibilidade de uma produtora que apostou o seu primeiro título em Gone Home.

Como quem chega a uma cidade que não conhece e se interroga sobre o que estará à espera quando dobrar a esquina, explorar a casa da família Greenbriar tem esse encanto de descoberta faseada. O jogo decorre inteiramente nestas divisões onde a madeira range e dá um toque morno à madrugada tempestuosa. Começamos a pegar em objectos, a ver fotografias, ler notas, a abrir portas e gavetas, a ligar candeeiros, a vasculhar os caixotes do lixo, a ler papéis amarrotados, despojos do quotidiano que por ali habitou: a casa é um recreio entregue à curiosidade de cada um.

É no meio destes pormenores, que à primeira vista parecem insignificantes, que vamos ficando a conhecer os elementos da família em falta. Porém, não sentimos que estamos a ver um reality show, pois é ao sabermos mais sobre cada elemento que entendemos a sua fibra emocional. As personagens que nunca vemos começam a ganhar a dimensão da profundidade, a complexidade que as torna credíveis e mais próximas; é assim que ficamos a conhecer a luta do pai na sua vida frustrada de escritor, as cartas que dão esperança e a retiram, as dificuldades em publicar o segundo livro, por exemplo.

Mas tudo isto são alicerces que suportam a viga mestra da narrativa, um fio condutor que nos vai chegando depois de examinarmos objectos que despoletam cada entrada no diário da nossa irmã, prontamente narrada pela própria. Aos poucos vamos constatando a montanha-russa emocional pela qual passou. Desde o desencanto com os rapazes, até encontrar Lonnie, a "tal" rapariga e a angústia a que o secretismo leva.

Gone Home

foi executado como uma passagem em crescendo, um reunir de informação importante sobre uma simples história de amor que, termine da maneira como terminar, cativa o jogador, leva-o compulsivamente a procurar pistas em cada divisão principal e, posteriormente em passagens e áreas secretas; avoltar atrás como se volta à página anterior quando se está a ler um livro que desafia as horas da madrugada e onde tempo não é empecilho para ler novamente um parágrafo que provoca algo, aqui manifestado pelo regressar a uma divisão já explorada, desde que tenha uma qualquer carta ou anotação que mereça ser sublinhada mentalmente.

Permite testemunhar os vários estádios do apaixonar da nossa irmã, seja um abraço trocado quando vai ver uma banda ao vivo, a Lonnie pintar o cabelo e a falta de palavras para dialogar sobre a sua beleza, a ameaça da partida que vai pairando e ensombrando, um coração rasgado ao meio com as inicias S+L: um processo cintilante que não perde carga emocional por estar a ser conhecido em deferido, aliás, provoca alguma culpabilização de não termos estado por aqui para o que fosse preciso quando o foi, para tudo o que a nossa irmã mais nova quisesse da nossa companhia.

Essa ausência é ainda sublinhada quando em determinada altura, num dos papéis amarrotados, Sam pede a Katie que, encontre o que encontrar, não conte à mãe e ao pai. Se somarmos tudo isto aos problemas que tem em afirmar-se na escola, o resultado desta equação emocional é o coração, o nó que é na garganta quando bombeia uma aflição incansável.

Gone Home

vive de, e para, a história que quer contar. O jogador não tem que provar que é bom para chegar ao seu final. Não temos que afinar a temporização para avançarmos, não temos que lutar contra inimigos sem fim, não existem explosões, tiros, não temos que evoluir o nível da nossa personagem nem resolver puzzles, ninguém deixará de ver os créditos por não ter boa pontaria.

Mesmo com um ambiente riquíssimo e uma atmosfera patrocinada pela tempestade já mencionada, a produtora não usou nada para assustar o jogador que então facilmente o catalogaria como um jogo de terror. O pior é o que o jogador faz a si próprio, mesmo no sótão ou na cave da casa, locais idílicos para dois ou três pavores, é a mente do jogador que espera ser chocada e assarapantada, algo que nunca é materializado. Tal como Dear Esther antes e muitos depois dele, Gone Home é desprovido de muitas regras canónicas, o que apaixonou muitos e desiludiu outros.

Trago comigo memórias daquele cenário. Desde as cassetes VHS à consola da época, passando por pormenores como os comestíveis no interior do frigorífico, pela música com a assinatura Breatmobile ou Heavens To Betsy, televisões que entretanto ficaram mais magras, as capas das revistas, postais e quinquilharia. Cada e todos os passos são imbuídos num ambiente meticulosamente credível, é uma viagem à década feita metro a metro naquele soalho.

Mas sempre que me lembro da madrugada de Gone Home, o pensamento foca-se na decantação do amor, o seu aprimorar – escrevo este texto numa tarde em que o sol faz o gato espraiar-se para sacudir o resto dos dias cinzentos do pêlo, e facilmente me arrepio com a mescla emocional daquelas horas tão distantes deste calor. O cravar do momento em que li a última nota da minha irmã no sótão por entre mobília embrulhada e fotografias penduradas em cordas, imbuído no cantar da chuva e no grasnar da trovoada.

Pede-me desculpa por não ler isto em pessoa e que não esteja triste nem que a odeie. Está onde precisa estar. Confirma que no rebuliço por que passou esteve a pensar em mim, preocupada no estado em que estaria quando lesse aquela carta. Curioso, enquanto a li estive a pensar nela, em que estado estava quando a escreveu. Num jogo em que estivemos sempre a correr atrás do que já aconteceu, é uma nota que aponta para o futuro das relações e tal como está escrito na vidraça da porta principal, “havemos de nos ver noutro dia”.

O arco narrativo é luminoso e graças a uma progressiva apresentação feita com a sensibilidade de um mestre relojoeiro, não me foi empurrado pela garganta abaixo, pelos olhos dentro: foi algo que fui descobrindo na pele de Kat quando procurei pistas sobre o paradeiro da minha família e me deparei com o amor da minha irmã por mim e, sobretudo, pela pessoa que quero acreditar ainda está com ela, quase 20 anos depois.

Produtora:

The Fullbright Company

Plataforma:


PC

Vídeo:


https://www.youtube.com/watch?v=x5KJzLsyfBI

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