E se os objectos naturais falassem?

As colecções de história natural são tão importantes para biólogos e geólogos como as bibliotecas para jornalistas e historiadores.

Um pouco por todo o mundo, ecoam gritos de alerta sobre o estado em que se encontram as colecções de história natural preservadas nos museus. Autênticas bibliotecas da vida, como referia o New York Times de 27 de Fevereiro, estes repositórios estão ameaçados, não tanto pela falta de condições físicas, mas especialmente pela falta de recursos humanos especializados. A situação é tão grave que a própria revista Nature, em Novembro passado, publicou uma notícia acerca da situação que se vive em Itália, onde a falta de renovação de quadros já levou à perda considerável de espécimens por falta de manutenção.

As colecções de história natural são tão importantes para biólogos e geólogos como as bibliotecas para jornalistas e historiadores. No entanto, ao contrário das bibliotecas, as colecções que os museus albergam continuam a ser muito pouco compreendidas e consideradas, por alguns, de pouca utilidade. Se os objectos naturais coleccionados falassem, diriam que são a base do conhecimento científico e do sistema taxonómico, sistema de classificação dos organismos vivos. É a análise minuciosa destes objectos de colecção que pode permitir compreender o ecossistema passado, a relação das espécies com o ecossistema e levar ao desenvolvimento de medidas de minimização ambiental, perante os problemas globais que hoje enfrentamos.

A situação precária das colecções e a falta de incentivos começou na década 70 do século passado, quando os laboratórios universitários passaram a ter condições para ensaios de biologia molecular. A transformação estava lançada, na Europa e um pouco mais tarde em Portugal. A taxonomia foi a pouco e pouco diluída dos curricula universitários e os estudantes depressa se sentiram atraídos pela beleza dos resultados. O equipamento sofisticado e tecnologicamente desenvolvido facilitava a experimentação. Foi a era da Dolly, da biotecnologia, do sonho em explorar o genoma humano; já se conhecia a diversidade existente no planeta (julgava-se); tudo o que era colecção era passado e estava ali, guardado no museu, não fugia. Foram anos que aumentaram o conhecimento da célula, do gene, mas rarefez-se o interesse pelo “naturalismo”, pela classificação baseada na identificação in loco. A ruralidade dos estudantes também diminuiu e o conhecimento nato da natureza, que muitos traziam de berço e que produzia uma mistura heterogénea de saberes na população estudantil, foi-se perdendo. Paralelamente, as carreiras reestruturaram-se. Os naturalistas e curadores foram banidos como carreiras profissionais e substituídos por técnicos e investigadores, cuja avaliação não é compatível com muito do trabalho de rotina na curadoria duma colecção.

A crise económica veio piorar a situação precária das colecções de história natural. Com financiamento reduzido e sem recursos humanos. os objectos naturais facilmente perecem. No entanto, importa lembrar que Portugal alberga colecções nacionais e africanas,– ou seja, a responsabilidade científica é muito maior porque não se trata apenas de manter, guardar e estudar a nossa diversidade natural, mas também a de outros países que confiam no nosso conhecimento e experiência.

Urge, por isso, dar a conhecer à sociedade a necessidade de alocar recursos financeiros e humanos para manter as colecções de história natural. As colheitas devem continuar, e isso acarreta conhecimento sobre metodologias de campo que, ultimamente, pouco têm sido ministradas a nível do ensino superior. O não investimento na contratação de pessoal especializado é negar o valor dos objectos naturais e ignorar o seu papel para compreender a evolução, ecologia e conservação da biodiversidade. Na grande maioria dos casos, são jovens bolseiros, que rapidamente se tornam adultos envelhecidos com sonhos desfeitos, que asseguram as colecções. Mas não é apenas com bolseiros que se constroem ou se mantêm estas estruturas museológicas. Também não é apenas com actividades educativas ou lúdicas que os museus podem transmitir a sua razão de existir. Antes, mostrar a necessidade e o valor de serem instituições com actividades de investigação que permitem manter as colecções. São estas que podem assegurar os estudos a longo prazo, não só para nosso benefício imediato, mas sobretudo para as gerações futuras. À semelhança do que fez Itália agora, Portugal já desde 2011 possui um consórcio nacional de colecções. Padece, porém, de fazer ouvir a sua voz e mostrar a sua razão de existir.

Professora catedrática, Universidade de Lisboa

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