Um mapa para a Rússia

Andrey Zvyagintsev desenha um mapa do desregramento da Rússia contemporânea. Com assinalável propensão para a metáfora.

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Sim, vê-se Vladimir Putin neste filme, através duma fotografia emoldurada no gabinete da personagem do corrupto presidente da câmara da localidadezinha, bem a norte, na zona de Murmansk, em que o essencial de Leviatã se passa.

Que a efígie de Putin “abençoe” a personagem, representante de um poder corrompido e arbitrário, decidido a expropriar, por interesse próprio, um cidadão vulgar e desprotegido, não é inocente. Mas nada é inocente neste filme, que aliás tem nas outras personagens masculinas, capazes de projectar aquela masculinidade pragmática, atlética e a fazer “corpo” com a natureza, outras lembranças do máximo líder russo. De modo mais evidente do que nos seus filmes anteriores, do sobrevalorizado O Regresso (que o revelou em 2003) ao bem conseguido Elena (de 2011), Andrey Zvyagintsev desenha em Leviatã um mapa, microcósmico, do desregramento da Rússia contemporânea, a partir de sinais facilmente reconhecíveis a quem, fora da Rússia, vai todos os dias colhendo notícias desse estado de coisas. A corrupção do poder institucional, o apoio do poder religioso (o sacerdote, a quem compete, para não deixar dúvidas, uma espécie de discurso final pleno de hipocrisia), toda aquela zona difusa entre a lei e o fora da lei ocupada por gente e procedimentos que à falta de melhor termo se descreveriam como “mafiosos”.

E depois o efeito que tudo isto tem sobre as “pessoas comuns”, o atrito operado sobre as vidas banais e os laços afectivos, filmadas numa crescente decomposição. É um filme inteligente, bem pensado e bem escrito, mas talvez demasiado inteligente, pensado e escrito para o seu próprio bem. Esta dimensão programática, radiográfica, onde parece haver, a cada momento, um referente escondido, nunca é capaz de reverberar como Zvyagintsev pretenderia que ela reverberasse – e a verdade é que todas as alusões disseminadas pelo filme acabam por não se constituir em mais do que sublinhados, razoavelmente escusados, duma dimensão metafórica que é sobretudo uma grande “pista de leitura”: a Rússia como Leviatã carcomido, a “Mãe Rússia” da mitologia transformada em Rússia-Monstro. Esta propensão para a metáfora, para a referência enviesada, é algo bem dentro da tradição do cinema russo, sobretudo a partir dos anos 60 e duma geração (Tarkovski e todos os outros) “complicada” para o regime, que se habituou a trabalhar numa neblina de sentido para iludir, ou pelo menos confundir, a censura.

Que Zvyagintsev, cineasta contemporâneo, percorra caminhos semelhantes, talvez não seja só por tradição e só por si isso diga alguma coisa sobre a Rússia de hoje. Mas, por exemplo, Sokurov, que fez a passagem “entre Rússias” (da comunista à “nova”), continua a ser mais poderoso no tratamento, por exemplo, das propriedades alusivas da natureza do que qualquer momento de Zvyagintsev. Esse lado será porventura o que mais enche o olho neste filme, mas se ele se vê sempre com interesse – a inteligência não é um valor a desmerecer – é menos pela sua tentação grandiloquente e mais pela justeza, muito imediata, de certas descrições (os ambientes domésticos), ou da presença dos actores (os olhos desolados do par central, Aleksei Serebryakov e Elena Lyadova, já conhecida de Elena). Não é assim muito, mas é alguma coisa, o suficiente para justificar o visionamento de um filme que nos parece que tem sido largamente sobrestimado.

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