A que soam Cocteau, Shakespeare, Tchekhóv ou Beckett na voz de cinco palhaços?

E os Sonhos, Sonhos São junta excertos de dezenas de clássicos do teatro numa sequência transposta para o universo clown. Para lá do meramente paródico, António Pires e Luísa Costa Gomes criam no Teatro do Bairro uma nova peça a caminho da tragicomédia e do melodrama.

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“É importante dizer às pessoas que ninguém deve fazer uma coisa destas. Mas é tão divertido que se torna um bocadinho irresistível”. A advertência pertence a Luísa Costa Gomes e refere-se ao trabalho que, em conjunto com o encenador António Pires, desenvolveu em E os Sonhos, Sonhos São, um encadeamento de pequenos excertos de clássicos do teatro transformados em palco pela transposição para um universo clown.

Cocteau, Shakespeare, Tchekhóv, Beckett, Jarry, O’Neill, Gil Vicente, Sófocles, Brecht, Ionescu ou Almeida Garrett, entre muitos outros, extraídos dos seus universos originais e apresentados sem que uma vírgula seja alterada à sua escrita por cinco palhaços que emprestam um tom fatalmente tragicómico a cada segmento.

“É como pegar em vinhos maravilhosos e pôr tudo no mesmo copo”, continua Luísa Costa Gomes, responsável pela selecção de textos e pela dramaturgia. “Mas ao mesmo tempo não é. São homenagens. Sempre gostei muito de brincar com a tradição porque fazê-lo é uma forma de manter essa tradição viva, de a trazer para a nossa vida, de a tornar relevante novamente.”

Tudo partiu da leitura casual da pesquisa para um anterior espectáculo de António Pires, Entrada de Palhaços, uma encenação do texto de Hélène Parmelin estreada no Teatro Nacional de São João, Porto, em 2000. Quando esse acaso coincidiu no tempo com o projecto Mana, Solta a Gata, a partir da obra da poetisa Adília Lopes, em que Pires vislumbrou subitamente no travestismo dos actores um exercício clownesco, “nasceu essa vontade de pôr estes textos clássicos na voz de palhaços”, confessa. Partilhada a ideia com a sua cúmplice habitual, Luísa Costa Gomes viu no cruzamento de universos “uma ideia de uma simplicidade extraordinária”. “E essas ideias simples e impraticáveis são para mim as melhores. Pareceu-me uma coisa dificílima, de sucesso muito improvável, mas muito atraente.” A partir daí, começaram a trabalhar contra tamanha improbabilidade.

Antes sequer da selecção dos textos que formam E os Sonhos, Sonhos São, em estreia esta quarta-feira no Teatro do Bairro, em Lisboa (até 29 de Março), a preocupação passou então por um primeiro trabalho de palco, na construção das personagens dos cinco palhaços, interpretados por Julie Sergeant (um regresso ao teatro, 12 anos depois), Hugo Mestre Amaro, João Araújo, Mário Sousa e Rafael Fonseca. Foram os corpos dos actores, enquanto se entregavam a estas personalidades de palhaços, a sugerir os textos. “E depois percebemos”, acrescenta a dramaturga, “que nos interessava fazer algo que tivesse um sentido para além do meramente paródico, acabando por ser uma peça de teatro em si mesma.”

Quando começou a trabalhar finalmente sobre os textos, António Pires diz já não ter encontrado os mesmos actores do início, vendo-se, como que por magia, defronte de um conjunto de clowns. Aos poucos, as peças foram-se juntando, sem respeitar uma narrativa linear, abrindo-se a “ressonâncias de drama, quase até de melodrama”, numa sequência em que cada texto acabava por sugerir o seguinte – “o seu contrário, um complemento ou uma outra declinação do mesmo tema”, esclarece Luísa Costa Gomes.

Ganhando a sua própria respiração, E os Sonhos, Sonhos São foi assimilando um discurso progressivamente mais deslocado dos contextos originais, emergindo uma nova identidade a partir da narrativa que formam em conjunto. A comicidade, defende António Pires, acaba por resultar sobretudo da identificação das frases fora do universo autoral em que foram escritas, da forma surpreendente e inesperada com que se sucedem. Mas o todo, alimentado por uma visão global forjada hoje, acaba afinal por carregar uma crítica social e política logo abaixo da superfície. Nem é preciso esgravatar muito.

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