A bela adormecida

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A primeira vez que tentei ir à Igreja de Santa Clara não tive sorte. Levaram-me pela mão, para me mostrar a jóia ao lado do pedaço da muralha fernandina sobre o qual ainda é possível caminhar. Mas a igreja estava fechada. Um amigo já me tinha dito que eu tinha de lá ir e escrever sobre aquela igreja tão bonita.

A desculpa surgiu há poucas semanas, quando a Direcção Regional de Cultura do Norte anunciou que a igreja ia ser alvo de uma intervenção de restauro. Desta vez, certifiquei-me que Santa Clara estaria à minha espera, combinei uma hora e, quando me aproximei da porta, tinha a certeza de que ela estaria aberta.

É estranho nunca ter ido a Santa Clara pelo simples motivo de que, há alguns anos, ia, amiúde, ao Comando da PSP, instalado no que era o convento acoplado à igreja. No tempo em que, aos fins-de-semana, os jornalistas da cidade ainda iam ter com o oficial de dia, para verificar que roubos, assassínios ou actos de violência tinham acontecido no dia anterior, não foram poucas as vezes em que fiz esse caminho. Ia à polícia, como dizíamos, mas nunca me deu para espreitar o que ficava atrás do muro ao lado do comando.

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O Convento de Santa Clara, com a sua igreja, foi construído entre 1416 e 1457, para as freiras clarissas, que se começaram a instalar no local 20 anos antes do fim das obra

Desta vez, não houve hesitações. Atravessei a abertura no muro, entrei no pátio de pedra, deparei-me com a fachada da igreja e empurrei a porta lateral, certa que ela cederia. E ela cedeu. Cedeu para que eu pudesse ver, finalmente, de que é que falavam aqueles que diziam que tinha de conhecer Santa Clara. Cedeu para me mostrar profusão de talha dourada que ocupa paredes, altares e nichos. A igreja de pedra por fora é dourada por dentro.

Lá dentro estavam duas mulheres, voluntárias na arte de tomar conta da igreja, de garantir que os turistas se comportam, de esclarecer alguma dúvida. Uma delas mostrou-me o batente da grande porta, na forma de uma mão. Uma mão dourada, a que falta uma parte, como se alguém tivesse arrancado dali um anel, deixando um buraco vazio no seu lugar. “Escreva, escreva que foram-se os anéis e ficaram os dedos, mas não ponha o meu nome”, insistia a sorridente mulher. Também foi ela que me mostrou, ao fundo da igreja, por baixo do coro alto onde as freiras assistiam à missa, um dispositivo giratório, que alguns pensaram ser uma “roda” para deixar crianças abandonadas, mas que ela acredita ser o local onde as freiras passavam para o exterior os produtos confeccionados no convento, recebendo por ali alimentos. As dimensões da placa giratória e o facto de ela estar dentro da igreja e não no exterior, como era usual nas rodas, sustentam a sua opinião.

A outra voluntária deixa-me espreitar por trás de um dos altares, mostrando-me as madeiras corroídas, a gritar por restauro. Antes, o padre que passara por ali a correr já me levara numa rápida visita guiada às partes de Santa Clara que, hoje, por causa da degradação do imóvel classificado como Monumento Nacional em 1910, estão fechadas a visitas. O coro alto, o passadiço que corre ao longo da igreja, levando-nos às traseiras do altar e a uma vista única do espaço interior, as salas onde repousam imagens de santos retiradas de alguns altares laterais, com medo que estes quebrem sob o peso, de tão fracas que estão as estruturas de madeira.

Deixo-me ficar por ali, enquanto entram, aos pares ou em grupos de três, alguns visitantes com máquinas fotográficas ao pescoço. Não ficam muito tempo. Sentam-se alguns minutos nos bancos de madeira, tiram uma fotografia geral e vão-se embora. Nem sei se repararam que Santa Clara está a precisar de obras. Que as térmitas estão a corroer-lhe as entranhas. Que o dourado podia brilhar mais, se não estivesse escondido por anos de pó e uso.

O Convento de Santa Clara, com a sua igreja, foi construído entre 1416 e 1457, para as freiras clarissas, que se começaram a instalar no local 20 anos antes do fim das obras. O interior da igreja haveria de ser completamente transformado nos séculos XVII e XVIII, dando lugar a um dos mais belos exemplares do barroco joanino do Porto. Depois, a partir do século XIX, com a extinção das ordens religiosas, o espaço entrou em declínio. Quando a última ocupante do convento morreu, em 1900, o edifício passou para o Estado.

Escondida da rua, a igreja é uma ilustre desconhecida até para muitos portuenses. Agora, começam as obras. Obras poucas, apenas ao nível do talhado e do combate às térmitas, mas que se espera que não terminem por aqui. Porque um telhado restaurado pode impedir a água de entrar, mas quanto tempo mais resistirão os altares que já nem podem com os santos? Santa Clara está à espera. Na expectativa de que não demorem muito a ir socorrê-la, porque esta bela da cidade já dorme há mais de cem anos e, qualquer dia, não há beijo de príncipe (leia-se, investimento) que venha a tempo de a salvar.

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